Muito prazer - Walter Macedo Filho
Muito prazer
Quando Suzanne se viu nervosa, lixando as unhas,
sentada na tampa fechada da privada do lavabo, lembrou-se da dinheirama que
havia gasto horas antes com Sirlene, a manicure que toda semana ia até sua casa
e cuidava de suas garras.
- Que estupidez, pensou, jogando a lixa sobre o
balcão da pia.
O ato de acocorar-se naquele esconderijo só dela já
havia se tornado um hábito, um vício.
- Banheiro e cozinha não dá pra embromar. O que eu
faço é passar um pano à tarde e só jogo água uma vez por semana. A Bê queria
que eu acabasse com a água da cidade, lavando todo dia. Eu digo que lavo -
explicou Marilza, dando de ombros, para Ivonete, a moça recém-contratada que ia
cuidar por um tempo só da roupa do casal, depois que Silvaneide entrara em
licença-maternidade.
Suzanne descobrira, fazia pouco tempo, que “Bê”
tratava-se do singelo apelido para “Bruxa”, que era como as empregadas da casa
a chamavam, em seus conchavos. Tudo aconteceu por acaso e isso era a pura
verdade. Uma coincidência: este seria seu argumento caso fosse parar nas barras
de um Tribunal do Trabalho, acusada pela criadagem de espioná-las durante o
serviço.
- Meritíssimo, eu não fiz de propósito. Foi uma
grande coincidência. Eu que sou a vítima! - treinava de vez em quando Suzanne,
indo quase às lágrimas, simulando sua defesa no julgamento fictício.
O que aconteceu foi o seguinte: durante uma manhã
corrida, como eram seus dias de academia, faculdade, trabalhos voluntários e
passeios pelos shoppings, Suzanne entrou rainha-poderosa na cozinha dando seus
costumeiros pitís, que incluíam, de vez em quando, algumas orientações sobre o
que as empregadas deveriam e não deveriam fazer na casa. Naquele dia, Suzanne
vinha com a xicrinha de café na mão e, com os movimentos bruscos da encenação
de grande ditadora, fez com que o líquido escorresse pelos dedos. Olhou
irritada para aquilo, virou as costas e saiu pisando duro, entrando direto no
lavabo da sala para limpar a sujeira. Foi naquele momento que percebeu que o pequeno
vitrô do cômodo era voltado para a área de serviço e que, dali de dentro, podia
ouvir claramente todos os comentários estapafúrdios das empregadas, que,
naquela hora, incluíram a descoberta de que “Bê” era “dona Suzzane, a ‘Bruxa’”.
Como levar assunto tão doméstico e, digamos, íntimo
para Ricardo, aquele homem marido responsável pela vertiginosa ascensão social
do casal? Suzanne sempre gostou de morar naquela casa grande, mas nunca
prestara atenção no anexo-senzala.
- Doutora... doutora... A “Bê” quer que a gente a chame
de “doutora Suzanne”. Doutora, vê só. Nem dentista ela é.
A visita à cozinha e, em seguida, ao lavabo foi se
tornando cada vez mais frequente. Suzanne dava as ordens e fazia alguns
comentários soltos para, logo depois, trancar-se no lavabo e ouvir os ti-ti-tis
das empregadas.
- Marilza, você viu um par de brincos que estavam
sobre a minha mesa de cabeceira?
- Não vi não senhora.
- Ah... estranho... estranho – comentou Suzanne como
quem divaga olhando para o nada, saindo devagar, como alguém que vasculha na
memória lembranças confusas. E enfiou-se logo depois no lavabo. Foi uma das
sessões mais fecundas de maledicências vindas da cozinha contra Suzanne.
Suzanne percebeu que havia descoberto uma certa fórmula, um disparador para
instigar críticas sobre a sua pessoa. E passou a usar as insinuações vagas cada
vez com mais frequência.
Demorou pouco tempo para que Suzanne transformasse
as provocações em hábito quase que diário: a chegada surpreendente na porta da
cozinha; as ordens aleatórias; as críticas e as perguntas-acusações soltas; a
altivez ao sair de cena e o ato contínuo de fechar-se no lavabo.
Em uma manhã morna e abafada, ao postar-se sob o
batente da porta da cozinha, Suzanne surpreendeu-se com o grande número de
empregadas reunidas naquele espaço. Umas cinco ou seis, vindas de outros
apartamentos, todas petrificadas ao avistar a patroa.
Assombrada com o tamanho da plateia, Suzanne beirou
o exagero, demorando mais do que o suficiente no jorro de intrigas. Na saída,
apertou o passo, quase correndo, para seu esconderijo-lavabo. E então teve
início a confusão de raivas, rusgas, ruminações, risos e reclamações vindos da
cozinha.
Suzanne teve que levar uma das mãos à boca para
impedir que o seu grito-gemido pudesse ser escutado, enquanto mantinha a outra
enfiada entre as pernas. Não se recordava de ter tido um gozo tão intenso com
Ricardo.
Conto escrito para o encontro de
26/05/2015
Walter Macedo Filho é dramaturgo,
jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural. Integrou o Círculo de
Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho. Como
gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca Dicró, Biblioteca
Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu primeiro livro de
contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras. Atualmente escreve o roteiro para o
novo filme do diretor Paulo Thiago após ter desenvolvido o argumento.
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