Quem é Olinto, afinal? - Ana Claudia Calomeni



Quem é Olinto, afinal?

Olinto tem 93 anos. Cabelos brancos, nariz adunco, olhos azuis desbotados e bochechas vermelhas. Anda sempre de cabeça baixa. Dizem que seus ossos calcificaram assim e ele não consegue mais levantá-la. Garantem  que foi de tanto varrer olhando sempre pro chão.  Mas, como sempre existe mais de uma versão para o mesmo fato, tem gente que diz que ele não levanta mais a cabeça desde o dia em que  viu sua mulher ser atropelada por um caminhão em plena Nossa Senhora de Copacabana. Ninguém sabe ao certo, pois ele já chegou no bairro desse jeito. As histórias que contam dele nunca foram confirmadas, pois Olinto não fala, só varre. Varrer é sua tarefa no mundo. É com disciplina de soldado que a cumpre diariamente.
Independente do motivo por que anda de cabeça baixa, o fato é que há sempre um vendedor de balas perto dele. Contam que a filha de Olinto há anos contrata pessoas para acompanhá-lo pela rua, com medo de que ele passe mal. Quando perguntam “mas por que logo baleiros e não uma acompanhante?”, ninguém sabe explicar. Outros dizem que não é nada disso. Para esses, Olinto sai pelas ruas é vigiando baleiros porque seu filho viciou-se em drogas naquele tempo em que baleiros as vendiam na porta das escolas. Outros afirmam com convicção que ele nunca teve filho e a presença constante de baleiros próximos explica-se porque Olinto busca reconhecer nos rostos desconhecidos dos baleiros o rosto de sua mãe, que  fazia balas puxa-puxa como ninguém e gastava as noites cozinhando-as para vendê-las no dia seguinte. Olinto e a mãe saíam juntos para vender as balas e assim foi até ela morrer, quando ele tinha 10 anos. Quando duvidam dessa versão alegando inverossimilhança, uma vez que a mãe a essa altura do campeonato já virou pó há muito tempo, argumentam que é trauma de infância, e trauma de infância justifica tudo. Mas ontem já me contaram outra história: que a mãe o deixou na porta de um orfanato quando era ainda bebê. Dona Amália (que alguns chamam de Amélia) amasiou-se com um empresário do ramo de balas puxa-puxa e, como condição para ficarem juntos, ele exigiu que ela abandonasse Olinto. Dona Amélia, ou Amália, ninguém sabe ao certo, a princípio teria recusado a oferta, mas no fim cedeu, pois o amante prometeu-lhe custear o menino até ele se formar, o que permitiu a Olinto fazer o pé de meia que a filha tenta roubar dele todo domingo, daí as vassouras quebradas na última visita.
Olinto é mudo, dizem que perdeu a voz de tanto que gritou tentando avisar a mulher sobre o caminhão que vinha em sua direção, mas ela não ouviu porque havia esquecido seu aparelho de surdez em casa. Outros desmentem, afirmando que ela não era surda nada, que ela queria mesmo era morrer, pois Olinto é muito chato e infernizava a vida da pobre mulher de tanto reclamar do preço das verduras, da bagunça em casa e da comida sem sal que ela lhe preparava. Algumas pessoas garantem que Olinto nem mudo é, ele apenas finge para não ser obrigado a conversar com a filha, que aparece todo domingo, ansiosa, querendo saber como o pai passou a semana. Como ele não faz nada além de varrer e varrer e varrer, ser mudo desobriga-o de confessar à filha só ter varrido, até porque a moça não aceita esse estranho hábito do pai. Ela, inclusive, quebrou várias vassouras dele no último domingo na tentativa de fazê-lo desistir dessa esquisitice. Alguns asseveram que Olinto nem filha tem. A moça é o filho travestido que perdeu a identidade de tanta droga que consumiu.
Mas ainda tem uma outra versão dessa história toda. A de que Olinto tem, na verdade, 35 anos de idade, pinta os cabelos de branco,  usa lentes de contato azuis e finge ser muito muito velho, daí a postura. Os que acreditam nela garantem ser Olinto seu próprio filho pois ele mesmo, Olinto, nunca sequer existiu.

Conto escrito para o encontro de 26/05/2015


Ana Claudia é carioca e acredita na força das formigas. E dos ventos. E das coisas que não se veem.

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