(Des)ajuste - Francisco Ohana
(Des)ajuste
E ficou de tal forma incomodado
com a recusa do couvert que decidiu
inconscientemente observá-los. Deixou-se estar sobre o casal destoante como se
quisesse adivinhar-lhes os desejos. Serviria uns pãezinhos de queijo, bastante
recheio, com pedaços de provolone. Primeiro para ela, depois para ele. Diante
da nova recusa, sua inquietação rodopiava por não compreender a contundência de
certas pessoas em não aceitar demonstrações simples de afeto. Se ao menos
houvesse uma cobrança por aquilo. Ambos pareciam mais entretidos com seus smartphones do que com a motivação que
os levara até ali, pois a fome afasta qualquer possibilidade de desfeita da
clientela. Era o que pensava ao voltar para trás do balcão, dar uma topada na
canela que doeu um bocado, e apoiar-se sobre o tampo cor de tijolo ligeiramente
úmido, limpo feito a arrogância de alguns. Uma água com gás, por favor. Ah:
traz uma pra mim também? Ora, ora, então sua realeza decidiu se manifestar.
Batendo portas, portinholas e gavetas tão rápido quanto pode, retirou do freezer industrial de aço inoxidável
duas garrafinhas de vidro, que serviu molhadas mesmo, junto com duas fatias de
torta de pera à moda da casa. Muito obrigado. Obrigado pela gentileza, mas vou
ficar só na água, tudo bem? Obrigado, querido. O prazer que os dois sentiam nas
negativas em sequência não tinha nada que ver com dinheiro, porque, afinal de
contas, estava claro que se tratava de uma cortesia, um mimo para os clientes,
e, de sua parte, tampouco era decorrência do comportamento antipático de certos
estabelecimentos que te obrigam a consumir mais, caso queira ficar sentado. A
satisfação do casal fortuito parecia se fruto unicamente da petulância de
pessoas para quem tudo está sempre bem, o volume da televisão, o ar
condicionado, não, não precisa desligar o ventiladorzinho de mesa, pessoas que
se bastam com o toque em uma tela de celular. Esse comportamento esconde, na
verdade, uma enorme indiferença pela vida. Se soubessem o que é trabalho duro,
o que é ter de sair desta espelunca nas horas intermediárias da madrugada para
deitar numa cama dura de cerejeira, numa habitação popular com janelas de
pombal abertas para a exuberância dos letreiros da LAMSA, não confundiriam
Piedade com Hollywood. Se ao menos houvessem tido a chance de retomar um estabelecimento
à beira da falência, esforçando-se por transformar uma esquina decadente do
Centro num recanto oitocentista machadiano, aceitariam uma pizza branca, um
bolinho com café carioca. Uma vez mais atrás do balcão, os antebraços apoiados,
teve seus futuros do pretérito e críticas aos habitantes da região compreendida
entre a Glória e o Jardim Oceânico interrompidos pelo noticiário econômico na
tela de catorze polegadas. A Medida Provisória 665 é menos importante do ponto
de vista quantitativo, mas qualitativamente é muito ruim, porque cria figuras
de moralismo social para justificar um conservadorismo econômico, criando, por
exemplo, o casamento sob suspeita, de dois anos, para evitar uniões que são
potenciais assaltadores da Previdência. Ora, ora, ora. E não é que essa mocinha
é uma grandecíssima de uma filha da puta procurando um velho barrigudinho para
se casar e receber os benefícios da previdência. Reparou no modo como mexia nos
cabelos, como deixava a sapatilha pendida da ponta do pé rosado, com delicados
calos e sola apenas um encardida, balançando-a como um móbile hipnótico para o
senhor-com-cara-de-advogado-engenheiro. Com essa clareza de metas, é claro, não
sobra tempo para pães, azeite, uma caponata de berinjela. Sentiu desprezo por
aquela viúva potencial e por seu comportamento indefensável, embora não
nutrisse mais do que indiferença pelo marido-falecido ao lado. Enxugava os
copos rindo da própria vergonha, por sua ingenuidade ao misturar alhos com
bugalhos no intuito de identificar a vulgaridade do público que frequentava seu
endereço. Por mais que fosse absurdo, tratava-se ali de uma questão de
oportunidade, de estar no lugar certo, na hora certa, pois fazer que duas
paralelas se encontrem nalgum ponto antes do infinito é um problema de
estratégia e oportunismo, não de geometria euclidiana. O cofre, o erário
público, estava sendo assaltado pelas viúvas dos velhinhos do INSS, o que
tornava ainda mais cínica a recusa em comer uma cortesia da casa, feitas,
diga-se de passagem, com farinha selecionada, da Sardenha. Cinismo que cabia
perfeitamente dentro do corpo dela, que finalmente colocava o celular sobre a
mesa e olhava ao redor, detendo-se sobre o homem que estava a seu lado. Falta
de caráter que animava a língua que lhe umedecia os lábios, vetor que a
conduzia em leve inclinação na direção do senhor gordo que é retirado de sua
conversa virtual com o espanto de um alérgico que, desavisado, come o que não
deve, na iminência de um edema de glote. Então, ele vê, senhor de suas
previsões, a mulher insinuar-se sobre o homem e perguntar desenhando as sílabas
com seu nanquim sonoro e interessado: que horas são?
Conto escrito para o encontro de
09/06/2015
Francisco
Ohana é economista e participa de atividades que o mantenham ligado às artes,
principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do
Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.
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ResponderExcluirMas esse economista anda mais para artista!! Lindo conto!!
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