Presente - Ana Claudia Calomeni

Presente


O restaurante estava cheio, não havia mesa disponível e eu decidi pedir um suco ali mesmo no balcão. Percebi um homem me olhando fixo. Já devia estar assim há bastante tempo e o conforto do seu olhar em mim me fazia crer que já nos conhecíamos. Fixei meus olhos nos dele, eram azuis acinzentados. A bebida estava fresca e contrastava com a tarde. Um sentimento súbito de liberdade e um pensamento: se fosse eu a companhia daquele homem, a nossa história seria assim: eu me sentiria tão bem com ele que estar ao seu lado seria o mesmo que estar sozinha. Eu entregaria àquele homem de olhos tristes toda a minha intimidade, como se estivesse entregando absolutamente nada. O meu completo vazio. Com aquele homem, ficaria tão a vontade que nunca pensaria nele, ficaria tão perfeita a ponto de não sentir sua falta caso ele me faltasse. Ele estaria tão em mim que eu nem precisaria dele e nós viveríamos na mais completa e absoluta alegria de solidão. Ao seu lado, na nossa casa, no meio de uma tarde como a de hoje, eu faria coisas que até então só fizera sozinha, e aguaria as violetas, que crescem silenciosas e calmas sob meu olhar impaciente, e alimentaria o cachorro, e arrumaria o quarto das crianças, e leria, e choraria, e tomaria um banho demorado como se toma quando se está completamente só. Já inteiramente acostumada àquela quietude única e morna, ficaria contente ao perceber que ele se fora. Teria tanta confiança no meu amor por aquele homem que por ele não esperaria, e no meu mais íntimo suspiro não sentiria a sua ausência pois teria conseguido esquecê-lo. Seríamos tão íntimos que invisíveis, anônimos, e eu, num dia frouxo como este, com tranquilidade poderia optar por não mais existir. E então finalmente ele aceitaria a minha solidão como – se fosse – a sua própria e a respeitaria com calma e confidência.
A solidão é uma total liberdade?


Conto escrito para o encontro de 09/06/2015



Ana Claudia é carioca e acredita na força das formigas. E dos ventos. E das coisas que não se veem.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz