Primeiro encontro - Daniel Russell Ribas
Primeiro encontro
Encarou
o céu e o tempo. Chegou 10 minutos adiantado e quase 7 anos atrasado. A
passagem discreta das gordas nuvens lhe trazia uma serenidade sobre os fatos. À
medida que o sol se abria no horizonte do começo de tarde, sentiu que o fim é a
única verdade. Porque para haver a existência, é preciso que algo acabe. Quando
ela chegou, o sol assumiu soberanamente sua posição. Não havia mais nuvens.
Ela
se desculpou pelo atraso. Trazia uma sombrinha na mão, que ele notou. Após
perceber seu olhar, explicou que achava que fosse chover.
-
O tempo parecia que ia fechar, sabe?
Os
dois riem de forma desconfortável e relaxam. Trocam olhares, em busca de uma
licença para se sentirem bem em suas presenças. Ambos concedem, apesar de
resistência individual.
-
Sabe, você não parece muito diferente.
-
Há, fala sério!
-
É verdade. Talvez o cabelo esteja maior...
-
Piadista.
Ela
o encarou de lado e morde a ponta do dedo mindinho. A menção a este hábito tão
antigo quebrou seu receio e memórias sensoriais lhe invadiram. O cheiro
distinto, a forma como suas peles se tocavam, a pressão de lábios no corpo, a
dança de línguas... A ponta de sua língua no dedo mindinho. Seu passeio mental
foi interrompido no momento em que ela percebe o que ocorre.
-
Continua se denunciando.
-
Nem tanto.
Pensou
que por estar mais velho, aprendera a ser mais discreto com seus sentimentos.
Evitava exposição. Sempre soube que se deixasse outros cientes de seus planos
se machucaria. Por ser jovem e impetuoso, era descuidado. Foi assim que se conhecerem.
Sentia ter mudado. Todo mundo é alterado pelo clima e as experiências. Dela, só
vira as mudanças físicas: cabelo mais longo e liso, sobrancelhas bem-feitas, um
ar de sofisticação de alguém que conheceu o mundo e voltou para sua terra. Ele
nunca saiu daqui.
Soube
de seu retorno através de um amigo em comum. A mãe morrera, precisa tratar do
espólio. Os três se conheciam desde o começo. Quantos anos foram? Não importa.
Foi longo e rápido como os casos intensos. Ficaram com marcas reais e
espirituais durante e logo depois. Narizes e estimas partidos. Um desequilíbrio
entre forças. O amigo ficou no meio termo entre o casal, cuidando dos
machucados de um e procurando botar bom senso no outro. Para sua partida para
Europa, não demorou dois meses.
-
Fiquei surpreso que quisesse me ver. Achei que estivesse com a cabeça cheia com
as dívidas de sua mãe e... também... nosso fim de namoro não foi nenhum mar de
rosas.
-
Realmente, tou com bastante para lidar. Mas ainda fico aqui uma semana...
Adiantei uma parte, dá tempo... e... não sei; queria saber como estava. – e
sorriu.
Uma
ponta de satisfação e melancolia o atingiu como a ferroada de um escorpião. Com
tudo o que passaram, especialmente de ruim com os problemas e a violência,
ainda sobrara algo. Certas coisas não se dissipam no tempo. Permanecem
inocentes, envoltas à escama rugosa de feridas da vida.
-
Apesar de tudo, sinto como se nada tivesse mudado. Sim, estamos diferentes de
corpo, talvez de atitude, mas o bom de reencontro é ver o que ficou e o que tem
de novo.
-
Prefiro ver isto como um primeiro encontro. É um momento de não recomeçar, mas
de começar como somos agora. Estamos mais velhos. Ganhamos um novo olhar.
A
conversa seguiu pela tarde. Era noite quando o ânimo e o balanço do álcool os
carregaram até a cama. Transaram como namorados jovens, descobrindo os prazeres
e áreas sensíveis do outro como se apenas agora existisse. A energia os guiava
e somente. Gozaram forte mais de uma vez. O sexo continua muito bom. O sol
surgia no horizonte quando ela descansou.
Sem
sono, aproveitou para andar pelo apartamento. Talvez fosse fazer um café. O
mesmo lugar onde se encontravam. A diferença é que não precisavam trepar nas
escadas do prédio ou no banheiro de madrugada. Eram adultos e responsáveis por
suas escolhas. Abriu a gaveta e encontrou uma pequena caixa. Dentro dela,
documentos pessoais e fotos da época em que estas não se perdiam em meio a uma
tela azul virtual. Provavelmente deve ter posto tudo no mesmo lugar para não
esquecer, pensou. Admirou por um bom tempo as fotos dos dois jovens. Não
acreditou que tivesse guardado tudo aqui. Por um instante, quis recuperar tudo
aquilo, mas sabia ser impossível. O tempo não devolve, só tira.
Colocou
as fotos carinhosamente em cima da mesa. Pegou as identidades. A recente, feita
na Dinamarca, com seu nome de casada: Jaqueline Joren. Embaixo, a de quando
ainda vivia no Brasil: Antônio da Silva Ferreira. Comparou as duas fotos. “A
idade fez bem para ela.”, pensou. Então caiu a ficha de que a mudança havia
sido maior do que estética ou gênero. Jaqueline, de alguma forma, parecia
diferente de Antônio, na forma como agia. Havia uma confiança que quase o
inibiu ao combinar o encontro quando se falaram ao telefone. Confiança que
permaneceu nos gestos, olhares e atitude, inclusive na cama. Deixara de parecer
um menino frágil para se tornar uma mulher do mundo.
Num
fundo falso da caixinha, encontrou o dinheiro. 5000 dólares, como o amigo em
comum informou. Já tinha pegado com o marido o dinheiro para pagar as dívidas
da mãe. Deixou o dinheiro no balcão e fez café. Vestiu-se, deixou um bilhete,
guardou a grana no bolso da calça e saiu. Olhou para o céu e viu o tempo
fechado. Sempre chove pela manhã. Algumas coisas não mudam.
Conto escrito para o encontro de
26/05/2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura”
(http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal.
Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio”
(http://multiconto.blogspot.com.br/), em parceria com o poeta Henrique Santos.
Colabora como resenhista para o site “Boletim Leituras”. Mantinha o blogue “Poema
Diário” (http://pordiaumpoema.blogspot.com.br/), em que publicou poesias de
autores diferentes. Organizou as coletâneas
“Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É
assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados
pela Oito e meio. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de
usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da
Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente &
Pincel” (Ed. Flaneur), “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e
“Encontros na Estação” (Oito e meio).
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