Das Consolações ao Farol da Presença - Márcio Couto

Das Consolações ao Farol da Presença


Querida mamãe,

Será uma carta longa portanto não espere mais que divagações. Escrevo-a no Reina Sofia, frente à Guernica, e estou enfeitiçada. Não é a espécie de alarde da alma que me dispara o peito como Clarice ou Cecília, mas algo no nível de Vonnegut: uma piada violenta acerca das clemências e da loucura – e é pra lá de bonito mesmo assim. A luz de algo brutal e incorpóreo devastou-me a razão enquanto frente ao quadro, tenho muito a dizer sobre... Porém antes de me aprofundar é preciso situá-la: acontece que ontem terminei o livro de Igor e ele me despedaçou, em especial o conto sobre os dois celíacos: de certa forma é sobre como a eventualidade sempre dá um jeito de arquitetar coincidências, independente do quão irônico é acreditar em coincidências e caos ao mesmo tempo. É saudável para minha inteligência arranjar aleatoriedade e coincidência numa mesma oração? Imagino que não, mas eis a conclusão que tive: nem tudo para a inteligência é saúde, pois é também preciso pensar em doença: é com a corrupção de engrenagens puras que se pesquisa meios à desoxidação: o pensamento só é harmonia enquanto busca maneiras de esgotar-se: a condição fundamental de sua ordem é delegar conflitos entre essências, pois entende como conflito a parcela da razão que experimenta o descontrole. Em outras palavras, ao pensamento só há harmonia enquanto a razão flertar com cada vereda imaginável, incluindo as veredas que tem por natureza a intenção de destruí-la. Ah! e que experiências incríveis florescem no conforto do olho do furacão... Creio que a poesia também pense sua substância através do atrito: ideais contrários em rota de colisão; afinal não é disso que se trata a poesia: de dançar descalço sobre o gume da espada? Portanto sim: verificar coincidências no caos é entregar-se ao paradoxo; pois como um universo entrópico pode formular uma sincronia se a repetição é um caráter de ciclo e remete a sistema, o que por si só arruinaria a aleatoriedade? Mas ah! no entanto quem discutirá que a repetição ou a simultaneidade tem muito mais a ver com anomalia do que tentativa de lei? E não seria o próprio paradoxo uma permissividade possível apenas num universo de caos? Ah Guernica... está frente aos meus braços e pernas e na ponta de meu nariz. Acho que o conto de Igor arrancou-me a última nota de rodapé que me habitava os sentidos. As longas horas de reflexão me exauriram, mamãe. Agora sei que uma vez que se mergulha muito na coerência de qualquer apuro descobre-se que na base de tudo há muito pouco para se qualificar, pois os devaneios não me levaram a lugar algum, exceto à solidão. Uma exposição prolongada frente às imagens que Igor me proporcionou levaram-me a conclusão que não há leis no mundo, mas ensaios – e estes tendem a servir apenas como referência, pois eles compreendem que o mundo não é exato, logo sua regulagem é perda de tempo. E hoje vejo as mãos levantadas de mulheres e crianças e idosos e homens de fé e homens que atiram em homens de fé que fogem de homens que atiram em homens de fé; e os cavalos cavalgam e os soldados atiram e as meninas morrem e as flores são decantadas em pó e o chifre do touro derrete frente aos cornos escaldantes do diabo. O que Picasso retratou não foi outra coisa senão o próprio absurdo. Quero dizer, a humanidade tem a habilidade de reparar a si reparando com ela a ordem, mas eis que insiste em desatar-se num jogo de desmembramento e mutilação que se encerra com garras erguidas às nuvens de fogo. Eis o tal eterno retorno que papai vivia explicando; hoje o enxergo: nunca senti tanto medo pois nunca havia me alargado tanto os poros à presença do caos, eu o sinto frente a mim, ele é o esfacelamento da razão e o escancarar dos portões à pluralidade do niilismo. Será possível vencer? Será que só eu noto o tomo de desamparo e o grito de miséria apreendidos nessa pintura? Pintura?! Não! É uma fresta à dimensão do mal! Uma janela arreganhada para a face da aberração. A Guernica é o útero da besta. Como faço, mãe? Como faço para suportar a detonação que o medo arquitetou em meu peito? Vejo artistas e turistas e professores e críticos e todos choram e exaltam a genialidade e gozam de alegria e um ou outro critica a falta de realismo e pro Inferno com cada um deles: ninguém a merece! Não percebem que é um desserviço resumir Guernica a um exercício de contemplação? Preciso salvá-la! Lembro-me que quando criança brincava de sombra chinesa com o abajur do quarto, e com os dedos fazia uma patinadora deslizar no teto, desviar do lustre, saltar a janela e as dobras da cortina, e beijar a silhueta negra projetada pelos meus lábios. Lembro-me da alvorada dissipar a escuridão, lembro-me de não pregar os olhos a noite inteira e que jamais me sentia cansado, pois sonhava acordado. Lembro-me que não sentia medo de estar à mercê das circunstâncias, e que tudo se destruiu com o advento da maturidade. Tudo me trouxe a esse momento. Eis que parei de fumar mas encontro um isqueiro perdido na bolsa, a teoria do caos me diz ser uma coincidência, porém não acredito: tenho de lançar a obra de volta ao poço de horror de onde fugiu. E ficará tudo bem. Eles terão o que merecem, mãe.

Conto escrito para o encontro de 09/06/2015


Márcio Couto faz livro, arrisca poesia, e vez ou outra é pintor. No Rio nasceu e se desfolhou feito planta, só que diferente.

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