O toco - Marco Antonio Martire



O toco



Os engradados de cerveja empilhados do lado de fora do buteco davam uma ideia aproximada de como tinha sido a noite. Alguns cascos quebrados espalhados pela calçada também. E as guimbas de cigarro e a sobra de um discreto baseado. Chão sujo, tinha chovido, trovejado, todo mundo se protegeu da chuva na parte de dentro, o chão ficou uma lama só. O banheiro estava mais que fedido, um rato poderia ter morrido lá que seria ignorado, a privada mijada, cagada, cuspida, gozada, vomitada. Sacos de lixo ainda abertos aguardavam pela conclusão da limpeza, aquela amarrada depois de enchidos com os últimos restos da farra.

Diante de tanto serviço, Airton não pensava no tamanho do trabalho. Trabalho bom é aquele que precisa ser feito, que bom que eu tenho este emprego. Ele pensava em mulher, ontem no fim da tarde tomou um toco, depois do seu expediente no buteco, quando partia para a balada combinada. O toco foi daqueles monumentais, aquele que o homem teme enquanto dorme: Airton estava limpo, perfumado, vestido e com dinheiro. A rejeição foi diante dos colegas de trabalho, a galera percebeu no ato o "não rola" daquela mulher tensa.
Ela foi embora toda montada. O patrão ofereceu a ele a chance de uma grana, ofereceu um turno extra à noite, Airton topou.
Servir as mesas não foi problema. O que era meter garrafas de cerveja sobre as mesas daquele povo bebão? Meter as travessas de carne seca e aipim, os caldinhos de feijão e mocotó, as travessas de filé aperitivo? Dificuldade nenhuma. Desviar da galera chapada, da fumaça dos cigarros, cobrar a conta e contar dinheiro. Fácil.
Difícil foi olhar para ela. Difícil foi olhar para ela. Difícil foi olhar para ela.
Difícil é maneira de dizer. Na verdade, era muito fácil, entre as pausas de sua obrigação, os trabalhos aqui descritos, Airton lançava os olhos para uma certa garota. Ela estava sentada na mesa mais distante, na praça de um garçom colega.
Eu poderia jurar que uma das cervejas quase escorregou das mãos dele quando ela se levantou com uma graça que até um bêbado como eu considerou notável. Aquela saia azul a caminho do joelho manteve-se no lugar. Apesar do vento, não pagou calcinha. Era jovem, da juventude mesmo, jovem que eu pretendia ignorar, a gente examina aquele viço uma vez e olha para o outro lado, vai ficar babando o tempo inteiro? Em nome do respeito, eu sou um que respeita a beleza.
Olhar para ela era conter a imaginação. Naquela noite eu pensava nos meus problemas de dinheiro e no protagonista deste conto. Acontece que olhar não custa quase nada e imaginá-la era melhor que imaginar o Airton. Para quê a risada básica e a tragada brevíssima no cigarro? Para quê a cruzada de pernas? Para quê o olhar de efeito? Para quê os cotovelos sobre a mesa? Até pensei em chegar, passar recado que abrisse caminho, mas tinha muito homem naquela mesa, anotei a cantada e guardei no bolso. Eu não vou te imaginar, garota! Airton está de prova, vou só te olhar.
Porque você é uma saia azul e uma calcinha branca estilo shortinho de renda muito cara. Somente isso, um par de coxas nuas capazes de enlouquecer esta minha imaginação civilizada. Eu estou bêbado e percebo que estou bêbado quando olho para você, este conto perde até o protagonista: Airton? Já me esqueci dele. Sim, eu sou um cara gente boa, mas poderia ser uma cama larga e macia, um orgasmo libertador, por você eu trocaria de carro, o modelo que você quisesse, o apartamento que desejasse, e muitos vestidos tão amáveis quanto essa saia azul.
Sério, garota, se fosse pela regra da maior felicidade, quem vai ser mais feliz contigo, eu acho que o tal Deus lá de cima te concederia para o abandonado Airton. Até mesmo eu, de pau duro e tudo, concordaria com essa justiça de igreja. Mas relação séria não, um amasso, uma transa com o mais tesudo consentimento. Aquela coisa de paixão mesmo, feromônio descontrolado. Fosse eu a jogar os dados, faria. Mas a verdade é que ninguém pode lembrar de Airton quando uma beleza como essa de saia azul desfila com passadas longas entre as mesas toscas. Até Deus se atrapalha e entrega as mãos dela, os pelos da nuca e virilha para o que há de mais óbvio por perto: o garanhão de moto que a encanta.
Pobre Airton. Pobre. Pobre mesmo.           

Conto escrito para o encontro de 26/05/2015


Marco Antonio Martire é carioca, formado em Comunicação pela UFRJ. Já publicou os contos de “Capoeira angola mandou chamar” e a novela “Cara preta no mato”, esta em ebook pela Saraiva. Escreve crônicas para a Rubem (www.rubem.wordpress.com) e resenhas para o Cabana do Leitor (www.cabanadoleitor.com.br). É fã do Clube da Leitura.   

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