Rita, Ana, Amélia - Igor Dias
Rita, Ana,
Amélia
Às vezes, se entediava um pouco com a
rotina dos atendimentos. Consultório, hora marcada, neuroses pretensamente
diferentes mas sempre muito parecidas, e os eventuais pacientes doidos de
pedra, que negociavam uma realidade compartilhada à base de haldol, fluoxetina
e, esporadicamente, lítio.
A rotina de um consultório de
psiquiatria não difere muito da de qualquer médico. Na verdade, não difere da
rotina de qualquer profissional. Existem os jargões, os ritos e toda a sorte de
inutilidades que restringem ao mínimo o tempo útil do profissional, necessário para
resolver os problemas que realmente importam.
Ainda bem que pintava. Tinha um ateliê
nos fundos da casa, que construíra à base de muito conluio com empresas
farmacêuticas. Usava o dinheiro advindo do lobby para seu próprio deleite, e
não se importava muito, ao fim e ao cabo, se as pinceladas no tecido estivessem
sempre manchadas com o sangue daqueles que morriam em outro hemisfério,
alijados da cura de seus males agudos e crônicos que as pesquisas
inevitavelmente contornavam.
Foi na sexta-feira pela manhã, dia de
sua folga, que a campainha interrompeu os traços finais de uma natureza morta.
O carteiro trazia um telegrama. Era sempre estranho receber um telegrama no
século XXI. A mensagem, seca, era diretiva: “Rita, me ligue. XXXX-9231”
Sem hesitar muito, Rita ligou para Ana,
psicóloga amiga de longa data. Ao telefone, no mesmo tom diretivo, a mensagem
que sobressaía em meio às formalidades do estabelecimento do contato era “Rita,
me encontre”.
E Rita se encontrou com Ana no mesmo
dia, ao pôr-do-sol. Ana estava séria, conspurcada. Havia muita coisa imprópria
a ser dita da própria vida, mas os assuntos de trabalho eram ainda mais
urgentes e colocavam em uma dimensão supérflua tudo que versasse sobre a vida
mundana de homens e vinhos.
Ana estava ali para tratar de um caso, o
caso de Amélia. Falou que Amélia estava em um estágio em que já era possível
antever alguns sinais de psicose, razão pela qual ela achava importante fazer
esse encaminhamento à psiquiatria. Suspeitava de que Amélia precisasse de
remédios, e achou que Rita seria a pessoa certa: íntegra, sensível e com um
consultório que se enquadrava nas necessidades geográficas e financeiras da
paciente.
Quanto ao quadro, Ana falou que Amélia
começara a ouvir vozes. Só disse isso, nada mais. Rita, raposa peluda da psiquiatria
contemporânea, montou um diagnóstico inicial na sua cabeça ,e já pensou
preliminarmente em alguns remédios. A primeira consulta seria, portanto, apenas
o momento de ajustar tudo que já havia pensado previamente. Rita, então,
aceitou sem meandros o encaminhamento e, ao falar com sua mãe ao telefone,
agendou Amélia para a semana seguinte.
A paciente que começara a ouvir vozes
chegara ao consultório. Branca, magríssima, os cabelos loiros e ondulados
emoldurando dois grandes olhos verdes: vítreos e baços.
Ao sentar-se na poltrona à frente de
Rita, Amélia ficou em silêncio. A médica deu a ela os cinco minutos costumeiros
nesses casos e, ao perceber que o silêncio não se dissolvia, perguntou: “O que
a traz aqui?”. Novo silêncio, novamente de cinco minutos. Rita, no mesmo tom de
voz, paciente e senhora de si, perguntou novamente o que a trazia ao
consultório. Nesse instante, Amélia, amedrontada, vira-se para trás e saca um
bloco de papel e uma caneta da bolsa. Escreve em letras caligráficas: “Comecei
a ouvir vozes.”
Rita fica um pouco incomodada com a
situação. Entende que alguns pacientes gostam de levar o jogo da clínica para
outra direção, eles mesmos fazendo anotações. Cabe ao médico o papel de anotar,
ela sabe disso, mas quando o paciente decide anotar alguma coisa, fica evidente
que tudo não passa de uma demonstração de força, de jogos de poder. Com uma
dezena de anos de consultório nas costas, Rita sabe também que a fala é um
processo muito difícil, em especial na primeira sessão, em especial quando as
angústias são intensas, em especial quando o sofrimento é psicótico.
Rita, pergunta, então, como são essas
vozes que ela escuta. Amélia toma o bloco de anotações e se demora um pouco
mais do que na primeira vez. Quando termina, mostra a anotação para Rita: “Não
sei. Essas são as primeiras vozes que ouço. Nasci surda.”
Rita é tomada por uma vermelhidão,
seguida por uma palidez desfalecida e não responde nada. Dá mais cinco minutos,
outros cinco e, por fim, interrompe a sessão dizendo que quer vê-la daqui a
quinze dias.
Vai para casa e pensa. Se receitar
haldol ou fluoxetina à Amélia, cumprirá o rito. É psicótica? Então toma lá um
remédio que vai reduzir as vozes que você escuta. Mas e quem nunca ouviu nada?
É justo abolir o som de quem nunca o teve, mesmo quando fruto do delírio? E se
as vozes cessassem para sempre? E se jamais voltassem?
Senta-se no ateliê sem coragem de ligar
para Ana. Lembra-se dos representantes farmacêuticos. Tem vontade de perguntar
a eles, enfim, o que pensam, o que fariam naquela situação. Eles, que pensam
carregar em seus malotes a cura para todo mal, não têm como saber, muitas das
vezes, que o mal é também a cura, que a cura é também o mal.
Todo o dinheiro da indústria
farmacêutica transformado em ateliê, pincéis e tinta acrílica parecia convergir
para aquele momento. Rita, sentada em frente à sua natureza-morta, traça uma
linha grosseira com tinta laranja de uma diagonal a outra da tela, quase
completa.
Para quem olhava de longe, parecia que
havia ali a destruição de um grande quadro. Mas Rita, aliviada, sabia que
construía alguma outra coisa. Era preciso aceitar uma nova estética, menos
óbvia, menos conciliadora. Naquele momento, treinar os olhos para uma arte que
parecia proibir o que queria mostrar era um movimento de ressonância, uma forma
de também apurar os ouvidos para as palavras que não seriam pronunciadas.
Conto escrito para o encontro de 09/06/2015
Igor Dias
nasceu no outono de 1987, na cidade do Rio de Janeiro. Participa dos coletivos
literários "Clube da Leitura" e "Caneta, Lente &
Pincel". É autor dos livros "Além dos Sonetos Breves"
(poesia) e "Dinamarca" (contos) ambos lançados pela Editora
Oito e Meio em 2012 e 2015, respectivamente.
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