Mudanças - Cláudio PS



Mudanças


Não. Não faça isso. Isso de pular parágrafos inteiros por que são longas descrições.  Você abre o livro no meio e acha que assim vai ganhar tempo. Você está errado ou errada. Quem sabe é o escritor. Nós não sabemos nada, ou quase nada. A ordem é começar do primeiro capítulo. A história.
Você não vai saber que Leonor, aquela moça que sofre empurrando a cadeira de rodas da mãe inválida aprontou na adolescência, o quanto aprontou. Por que dessa forma só vai ver o sofrimento dela. Por que ela aprontou mais do que você imagina.
Ela infernizou a mãe na adolescência. “Vou dormir na Clarinha”. Mentira, dormiu na casa do Douglas fazendo sexo a noite inteira. E ia pro colégio com aquela cara de santa.
Mas, qual o problema, você vai dizer? Dona Tereza deve ter aprontado também. Cada um paga pelos seus pecados! Não importa, leia o livro todo. Quem virou noites escrevendo por que os personagens não paravam de falar foi ele. Não você. Você fecha o livro e dorme, ele não.
Realmente Dona Tereza não foi santa. Provocava os meninos dizendo que se lhe dessem um Mirabel mostrava a calcinha, levantando a saia plissada. E ganhou muitos Mirabel assim. Mas era só isso. Casou virgem e seu Antero foi um bom marido. Taxista, trazia a féria pra casa e só bebia no sábado. Chegava bêbado, é verdade, mas entrava, tomava banho, nem jantava , deitava na cama e dormia. Mas era só no sábado, perdoemos. Sem perturbar. E Dona Tereza deu à luz Leonor, lembra dela?
Mas como você iria saber disso pulando pro capítulo seis? Não saberia. O escritor, desacostumado com esse tal de Word que sofra, você nem liga.
A vida foi indo. O maluco da rua cantando a filha do tenente e já jurado de morte. Você não iria saber. O tenente perdoando o esquizofrênico, como você iria saber jogando o livro na caçamba de lixo, por que o livro é uma merda?  Ah. Mas isso á é outra história. Sim, e quando você assiste novela, e assiste seis histórias diferentes, você reclama? Não, a vida é assim. Vários núcleos. À sua volta nove da noite.
O escritor bebendo cerveja quente por que se esqueceu de colocar na geladeira. Você nunca iria saber. Bêbado então? Nem sonhando.
Leonor casou-se, separou-se quatro anos depois. E o teclado do computador lento do escritor por que o idiota ficou vendo site de sacanagem e encheu de vírus, malwares e ele nem sabe. Ganhou aquele computador do amigo contabilista, e acha que é assim mesmo. Felicidade era a máquina de escrever mecânica. Remington de preferência.
A mãe, entrevada, morre aos oitenta e nove anos. Leonor, sozinha, vive de favor na imaginação do escritor. Ele, coitado, virou jardineiro na França por dez euros por hora, vivendo na imaginação de ninguém, por que abriram o livro dele no capítulo nove e não se sabe o que ele passou antes. Nem o que está passando agora. Vai sobrevivendo, sua sina. Você percebeu que tudo muda se começar a ler do meio do livro, ou não?


Conto escrito para o encontro de 26/05/2015




Cláudio PS acredita que sabe escrever desde que tirou 10 em redação na oitava série.

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