Melhores intenções - Walter Macedo Filho
Melhores intenções
Ao
sair da igreja, agora há pouco, percebi que minha fé não anda lá essas coisas. Acho
que é o meu jeito de misturar medo com raiva. Tenho raiva de tudo que é divino.
E tenho medo de ser castigado por essas coisas divinas por causa da raiva que
tenho delas. E minhas falhas são causadas pelo medo que tenho de ser castigado.
Vivo em pânico. O medo me dá raiva; a raiva me paralisa e, então, eu falho. Ao
sair da igreja, agora há pouco, ficou muito claro que nunca mais me perdoarei. O
que mais eu podia ter feito? Eu me distraí. Foi por pouco, mas eu me distraí.
Eu
estava feliz. Feliz de verdade. Fazia muito tempo que eu não me sentia assim,
tão contente com tudo e, por incrível que pareça, contente comigo mesmo. Eu
deveria ter desconfiado. Não era possível ficar assim, tão feliz. Ninguém fica
feliz com aquela intensidade. Ninguém. A felicidade sempre traz junto uma
espécie de cegueira. A gente fica meio tonto, achando que as coisas finalmente
estão dando certo. E acaba acreditando que nada mais sairá dos trilhos. Pura
ingenuidade. Os melhores momentos são, na verdade, o prenúncio das catástrofes.
Eu
sempre tive muito cuidado com tudo e com todos. Sempre fui delicado no trato
com as pessoas. Chego a deixar de lado as minhas coisas para me dedicar a
qualquer um. É óbvio que com ele não seria diferente. Com ele, eu seria até
melhor. Eu costumava ouvir suas reclamações com atenção e tentava, a todo custo
e com toda sinceridade, ajudá-lo a encontrar saídas, a resolver suas coisas,
seus pequenos dramas.
Você
é um otimista, ele me dizia, um
verdadeiro otimista.
O
dia estava perfeito, com aquele clima que eu adoro. Nesses dias, dá vontade de passar
o tempo todo olhando para o céu sem pensar em mais nada. Nesses dias, eu
poderia desaparecer para sempre, só para que um dia como esse fosse o último...
o eterno. Eu acredito que alguma coisa deve ter acontecido comigo, quando eu
era pequeno, e que me deixou essa marca para sempre: os dias nublados me
deprimem a ponto de eu sentir dores no corpo. Imagino que eu viveria melhor
morando em algum lugar parecido com aquele. Já pensei nisso. Penso nisso o
tempo todo. Agora, depois de tudo, vejo que será impossível sair daqui e viver
em qualquer outro lugar. Nunca mais poderei sonhar com isso.
Naquele
dia eu tive as melhores intenções. Hoje sei que as melhores intenções valem
muito pouco, quase nada. Eu estava certo de que era o melhor que eu estava
fazendo. Tinha tanta certeza, tanta certeza que deixei de prestar atenção no
caminho. Falhei. Bobagem minha ter concordado com tudo. Uma grande bobagem.
Por
que ele não perguntou? Seus dois grandes olhos grudaram em mim. Por que ele não
disse nada? Se ele já tinha percebido que alguma coisa estava errada, por que
não virou para mim e disse:
Porra,
meu, que merda é essa? Que caralho você está fazendo?
Ele
costumava repetir “merda” e “caralho” em duas frases, em sequência. Era sempre
nessa mesma ordem. Como se fosse uma reza. Quando jogávamos bola, era assim o
tempo todo. Fosse uma jogada de craque ou uma grande cagada, era a mesma dupla
de área saindo de sua boca: Merda, caralho! Há pouco tempo perguntei a ele se
na hora “H”, quando estava transando, usava as mesmas palavras, na mesma
sequência. Ele me respondeu que não se lembrava, mas que da próxima vez ia
prestar atenção. Nunca mais saberei a resposta.
Conto
escrito para o encontro de 09/06/2015
Walter
Macedo Filho é dramaturgo, jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural.
Integrou o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por
Antunes Filho. Como gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca
Dicró, Biblioteca Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu
primeiro livro de contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras. Atualmente escreve o
roteiro para o novo filme do diretor Paulo Thiago após ter desenvolvido o
argumento.
que sutil. Gostei muito da construção elegante da sequencia de parágrafos. Bom para revelar o que não se sabe. Parabéns!
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