Jaguadarte - Guilherme Preger
Jaguadarte
“Que porra a meia-idade!”, pensei,
enquanto tomava um cafezinho no Café Gaúcho e olhava as patricinhas que
caminhavam no Centro do Rio na hora do almoço. Sou apenas um cana velho, mas
com certeza eu ainda poderia comer qualquer uma dessas novinhas. Minha Rainha dizia que já estava na hora de
me retirar. Mas ficar em casa seria meu fim. A Rainha não entende: se eu ficar
em casa de bobeira, seria uma tentação. Eu só iria ficar atrás de novinhas.
Então, adeus Rainha. Ela acabaria cortando meu pau, se eu desse mole. Ela vivia
me dizendo: “Você é um cara-de-pau-duro”.
Será que meu contato viria? Desde que me colocaram na Divisão de
Repressão aos Crimes de Informática – DRCI – que não consigo resolver mais
nenhum caso. Parecia uma promoção mas não era nada disso. Sabiam que não manjo
nada dessa porra de computador. Sou virgem nisso. Fizeram essa sacanagem porque
entrei no movimento anti-proibicionista. Cansei de ver neguinho morrendo por
causa de um baseado. Não faz sentido essa porra. Eu sempre fui contra maconha,
até o dia em que peguei meu garoto adolescente com um cigarro na mão. E a merda
é que eu estava bebum de uisquinho. Era algo sem sentido. Em vez de eu dar um
esporro nele, foi ele que zoou em cima de mim. Marrento. Tal pai, tal filho. Decidi
que ia sair dessa hipocrisia antes que meus colegas soubessem. Perdi a moral
para prender essas pobres mulas do tráfico e acabei batendo de frente com meu
chefe. Depois veio essa história de redução da maioridade. Sou contra essa
bobagem. As cadeias já estão superlotadas e ainda querem meter mais meninos lá
dentro. Eu sei, por meu próprio testemunho, que se rolar essa redução, os
primeiros a dançarem serão os menores. Sociedade hipócrita e filha da puta.
Por causa dessas causas perderam a confiança em mim e me botaram na DCRI.
Só tem garotada lá dentro. Para me humilhar me deixaram de chefe um pirralho
com menos de 30 anos. O garoto se acha o máximo. Ele me chama de “Chapeleiro”,
porque estou sempre com uma boina diferente. Essa garotada nova é muito arrivista.
Eles só querem resultado. Me colocou num caso de lavagem de dinheiro. Detesto
esses casos, porque é só número. Dinheiro na conta de lá, dinheiro na conta de
cá, nesse negócio um tanto, naquela nota outro tanto. Não tem ação nenhuma, tudo se passa num mundo
virtual. Descobri que preciso abrir um arquivo onde estariam todos os dados do
“Rato”, nosso alvo de investigação. Mas não sei como fazer isso, porque não
entendo desse mundo de dados e números. Eles sabiam disso o tempo todo. Só
quiseram me foder perto da aposentadoria, pois não consigo ganhar promoção já
que a garotada nesse assunto é muito melhor do que eu. Em compensação, quase
ninguém lá dentro sabe manejar uma arma...
Meu amigo, o Coelho Branco me passou um contato. Não sei quem é, mas ele
me disse que é F – fêmea. Agente de confiança. Codinome: Lagarta. Estava
esperando Lagarta, quando me perguntaram por um isqueiro atrás de mim. Virei e
vi, era uma novinha, dessas meio punk, pequenininha, cabelo pintado nas pontas,
um anel na sobrancelha, os olhos marcados de preto, calças rasgadas na altura
do joelho, uma mochilinha. Típicas, essas garotas skatistas e punks. O que
primeiro me veio à cabeça foi um pensamento de merda: “essa menina podia ser
minha neta”. Estava meio envergonhado pois eu deveria tê-la visto primeiro.
Bobeei. Então disse olá, pois já tinha entendido que essa novinha era a tal
Lagarta. O código era justamente pedir um isqueiro, já que hoje em dia ninguém
pede mais fogo assim. Ainda mais se você não estiver fumando.
“Lagarta?, perguntei. Ela concordou com a cabeça. Você é o Chapeleiro,
não?, ela me disse. Olhei-a de alto a baixo. Uma idade indefinida, no máximo
uns 20 anos, seios mínimos, não usava sutiã. Bunda grande. Cabelos pretos
compridos, com uma franja sobre os olhos. As mechas pintadas de azul. Os olhos eram meio esverdeados. Achei que
eram lentes. Estava com uma expressão de entediada, como se estivesse irritada
com alguma coisa. Tive também uma antipatia.
E tentando esconjurar a sensação de que aquela menina poderia ser minha
neta, pensei então: teria cabelos entre as pernas? Teria boceta cabeluda ou
seria pelada? As novinhas nessa idade estão todas se depilando, imaginei. Não
gosto dessa moda, mas tudo bem. “Como se chama?”, perguntei. “Me chame de
Alice, ela disse. Você trouxe o prometido?”. “Claro, Garota, eu não ia te
deixar na mão”. “Então vamos almoçar, ela falou”. “Onde você quer?” Ela então
me levou para um restaurante indiano vegetariano logo ao lado. Subimos por uma
escada em caracol cheia de flores pelo chão, com cheiro de incenso e uma música
hare khrisna ensurdecedora. Enquanto subíamos, ela na frente, eu ia reparando
sua bunda. Ela era uma quase menina, mas sua bunda era de mulher. Vi também em
sua nuca, tatuada, a palavra
“Jaguadarte”. Que porra é jaguadarte?
Eu detesto comida vegetariana. Naquele dia serviam um yakisoba de legumes
e uma berinjela recheada. Tive que admitir que estava muito bom. Durante o
almoço, quis saber algumas coisas da moça, mas ela não parecia muito
interessada em papear. Ela queria ver o brinquedinho que eu trouxe e seria o
pagamento pelo serviço. Abri minha pasta e retirei o envelope. Não seria
dinheiro, era o trato nosso. Não rolaria grana nem drogas. O pagamento é um
taser moderno que eu havia conseguido com os idiotas da PM que combatiam as
manifestações. Agora que não rolavam mais manifestações, havia muitos desses
jogados nos armários. Era fácil conseguir um, pois ninguém na polícia quer uma
arma não letal. E eu sei que essa garotada de hoje adora tasers. “Ele funciona tanto
à queima-roupa, como à distância”. Os olhos da menina se abriram felizes. Ela
pegou o treco como uma menina que manuseia uma boneca. “Só não pode se
masturbar com uma coisa dessas”, brinquei para quebrar o gelo, mas ela me olhou
com um olhar enfezado e por pouco achei que ia desistir. “Bricadeirinha”, falei
sem jeito. Comemos o resto do almoço em silêncio, depois paguei a conta e
saímos.
Quando estávamos na rua, perguntei: “você trouxe seu computador?” Ela me
olhou como se eu fosse um cretino. “Para o que vamos fazer, só numa lanhouse”.
Então nos dirigimos para uma lanhouse na rua da Assembleia, muito perto de onde
estávamos. Subimos uns andares e eu estava querendo quebrar o mal entendido,
porque minha piada tinha sido muito fora de propósito e então perguntei o que
vinha a ser jaguadarte. Mas a pergunta só teve um efeito de piorar o
estranhamento, pois ela me olhou com seriedade, dessa vez como se fosse uma
mulher bem madura e falou: “Vocês canas acham que tudo tem que ter um sentido.
No que eu faço, precisamos procurar pelo que não faz sentido”.
Uau! Essa novinha era terrivelmente imprevisível. Chegamos numa sala
cheia de computadores. Havia muitos jovens lá dentro. Ela escolheu uma bancada
isolada junto à parede. Abriu sua mochila, tirou um pen-drive e colocou no
computador. Logo abriu-se uma tela negra. Ela começou a digitar algumas teclas.
“Agora vamos atravessar o espelho, ela disse. Onde estão os dados?” Eu lhe
entreguei outro pen-drive: “está tudo aí”. Ela instalou no computador e
continuou teclando. “De onde te conheço, perguntei, porque eu te conheço, não?
Por que você está ajudando um cana velho como eu? Não é por compaixão, não é
garota?”. Sem tirar o rosto do que estava fazendo, ela deu risinho, o primeiro
do dia e disse: “Você estava lá, na delegacia no Catete naquela manifestação do
Papa”. “Você foi presa naquela noite?”, perguntei assombrado. “Não, mas a minha
amiga foi”. E então pegou o celular, e me mostrou uma foto. Era eu mesmo, dois
anos antes, dando um esporro num PM que tinha enchido a delegacia de gurizada.
Ela tinha tirado aquela foto sem que eu percebesse (as fotos eram proibidas na
delegacia). Estava tudo uma confusão,
cheiro de gás de pimenta e uns 30 meninos e meninas que haviam sido presos. Os
PMs queriam mandar todos aqueles jovens
para Bangu, mas eu não deixei. Bangu já estava lotada, disse àqueles canas
broncos e os expulsei todos da delegacia. Depois que a coisa se aquietou, fui
mandando embora, jovem após jovem. “Quer dizer que sua amiga, estava lá”? Ela
concordou, sem tirar o rosto do computador. Imaginei que “amiga” queria dizer
namorada. Essas meninas agora só transam entre si, pensei desanimado. Será que
gostariam de homens mais velhos, com um certo ar paternal, protetor, pensei no
cúmulo da safadeza?
“Já tenho tudo - ela disse depois de alguns minutos - vou mandar
imprimir. Cadê o brinquedo?”. Surpreso pela rapidez do trabalho lhe passei o
taser. Ela o guardou rapidamente na mochila e tirou dela outro pen-drive. “Tome
esse criptógrafo para você e instale em seu computador. Só vamos nos falar
através disso de agora em diante. Se precisar digita uma mensagem e eu logo
respondo. É meu “gift”, disse com um sorriso. Um brinquedo por outro
brinquedo”. Fiquei feliz, afinal um trato se fazia entre Alice e eu. “Quando você
entrar, ele vai pedir uma senha. Então digite... jaguadarte”, disse com um
sorriso malicioso. “Agora vá buscar lá, pois já mandei imprimir tudo”.
Me levantei, peguei a impressão, paguei a lanhouse, mas quando voltei
Alice tinha... desaparecido! Evaporou-se,
sumiu completamente. E o estranho era que, para sair da loja, tinha que passar
pela bancada da impressão. Na tela do computador onde estávamos, havia apenas
uma boca e um sorriso se desfazendo. Nâo entendi e saí da lanhouse desolado.
Gostaria de ter conversado mais com Alice. Apertei com força o pen-drive que
ela havia me dado, pois esse era o nosso contato e segui andando pelas ruas do
Centro carioca pensando no que seria afinal Jaguadarte. Que merda ter
meia-idade, ela poderia ser minha neta. E esconjurando esse pensamento, me
vinha à cabeça a pergunta insistente: seria cabeluda ou pelada? Essa questão, eu ainda iria saber
responder...
Conto escrito para o encontro de 23/06/2015
Guilherme Preger é escritor e engenheiro, autor de
"Capoeiragem" (7Letras) e "Extrema Lírica" (Oitoemeio) e
está no Clube da Leitura desde sua fundação.
Muito bom !
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