Ingredientes frescos - Daniel Russell Ribas
Ingredientes frescos
Sou um gourmet, jamais um sátiro. Meu paladar é meu
guia e nada me falta. Enquanto a humanidade se expressa em funções
intelectuais, fisiológicas e, às vezes, pragmáticas, minha fome manteve um
sentido denotativo. A comida possui uma função maior do que a sustentação do
corpo ou um toque de luxúria. É a aura que me queima à perdição. Por isso, pode
soar paradoxal (não que me importe) relatar que minha primeira vez foi com as
melecas de nariz na tenra idade de oito anos. A variedade em formato,
consistência e gosto, do mais empedrado ao líquido, passeando por volume e seu
toque na língua se tornou uma formação involuntária. Um estranho desejo avolumou-se
em minha carne e gritei. Foi como se uma parte de mim sofresse uma mutação. Ao
longo dos anos, entendi o que ocorreu; minha iniciação precoce.
Aos poucos, fui à busca de novos sabores. Em curto
prazo, notei que havia uma diferença significativa entre posicionamento,
quantidade e manipulação. Eu desprezava produtos industrializados. Ódio é uma
definição desnecessária, pois objetos de fábrica nunca mereceram tamanha
paixão. Isto ficou mais claro quando visitei meus avós em um sítio e a
empregada deles nos preparou um prato típico: galinha a molho pardo. O êxtase
começa em relembrar os detalhes, desde embriagar a refeição com um copo
generoso de cachaça, vê-la trôpega, se estender e sentir o calor do sangue que
espirrava de seu pescoço recém-cortado. O cheiro do corpo em uma poção
escarlate borbulhando invade minhas narinas e provoca vontades à mera
rememoração. Aquele foi meu literal batismo em sangue. A noção de ingredientes
preparados na hora é o clímax na pirâmide.
Entrei no limbo masturbatório chamado internet com o
propósito exibicionista de mostrar como, onde e por quê se deve comer bem. A
intenção nunca foi ensinar, pois seria impossível em uma ordem tão
individualista quanto se alimentar. Embora precise admitir que descobri um novo
prazer, complementar a descrever sensações: destripar reputações. Se antes a
ideia de ir a um estabelecimento de qualidade inferior era uma ofensa,
transformou-se num desafio. Eu era a Esfinge, exigindo ser decifrado para
evitar um destino como restos intestinais. Com a reputação que ganhei por
minhas avaliações, tinha os meios financeiros e a condições logísticas para o
intento.
O primeiro soco que dei após a chegada da fama foi
no Mishima, um restaurante japonês. O sushiman era um velho cuja família há
oito gerações se especializara na arte do preparo de refeições. Eles criaram
facas e plantavam arroz em sua propriedade com este propósito. Lendários. O
dono fechou o lugar só para mim e ofereceu todos os préstimos de sua equipe. O
sushiman retirou com uma pegada firme um salmão do aquário e o pôs a minha
frente. Observei com frio prazer o bicho estrebuchar até ter sua cabeça
cortada. Sorri. Enquanto ele limpava e cortava o interior, notei uma bela
mulher asiática com um quimono vindo em minha direção. Ela parou ao lado, fez
uma reverência e sua roupa deslizou pelos ombros. Sua nudez era bela e tímida
como uma boneca de porcelana. Ela se abaixou e fez sexo oral em mim. Os
movimentos de sua boca em meu pênis vinham no mesmo ritmo com o que sushiman
preparava minha refeição. Gozei no momento em que o prato fora finalizado. Após
terminar, agradeci a todos e me retirei. Sou bom em dissimular emoções e manter
uma expressão distante. Após uma hora, publiquei a resenha em que mencionava a
ligeira tensão em pontos na carne, a ausência de corte retilíneo em certas
peças e a inconsistência no arroz, que alternava de maneira desarmônica grãos
maiores com menores e a viscosidade. Oito dias depois, o preparador, um dos
últimos membros em uma dinastia, com 88 anos, fez hara kiri. Talvez o corte em
seu próprio estômago tenha sido mais firme.
Vieram outros e sobre seus corpos dancei gracioso. O
prazer que sentia começou a esvanecer e senti que precisava de um desafio.
Publiquei um aviso na minha coluna: “Caso se provem dignos de meu apetite,
serão recompensados. Ou, então, devorados! Decifrem-me.” Fui convidado no dia
seguinte para um restaurante cego. Em essência é um local sem qualquer
iluminação em que somos servidos por funcionários cegos. Você não sabe o que
vai comer ou quem estará na mesma mesa que você. Dizem que a experiência
enaltece seus sentidos, o que é verdadeiro até algum ponto. Após um tempo cuja
mente não sabe precisar, me serviram um sashimi gelado. Ao manipular com o hai
chi a comida, senti uma pequena pulsação. Encostei de novo e a batida surgiu
uma segunda vez. Ouvi um som similar a um coaxar enfraquecido. Passei com a
ponta de madeira em uma superfície fina. Uma vibração forte me balançou. Peguei
o ingrediente e o mordi com gosto. O ruído foi alto. Parti para a peça que
palpita e o mastiguei. O resto da refeição foi em silêncio contemplativo.
Quando saí, soube que o prato era sashimi de sapo, que consiste em um sapo vivo
com as pernas esfoladas em um balde de gelo. Dei oito estrelas, o mais alto
grau que dera em minha cotação.
Dediquei-me à busca de pratos vivos, de peixes a
cachorros, preparados com diversos molhos, saladas e complementos nos mais
obscuros lugares ao redor do globo. O lado infeliz de minha obsessão foi a
retirada de patrocínio devido aos comentários negativos e pedidos de boicote à
minha coluna. Nunca racionalizei como uma vaca, que aceitamos como combustível
orgânico, pode ser diferente de um animal doméstico. Divertia-me pensar em um
universo paralelo em que porcos eram tratados com brinquedos tolos e visitas ao
pet shop e gatos criados para se tornarem recheio de espetos.
Estava ao fim de minhas economias, porém
determinado. Oito anos se passaram, eu tinha material para oito livros sobre
culinária extrema e há oito anos tinha meu estômago como residência fixa. Não
me importava com os quartos pequenos e úmidos, as roupas sujas e suadas ou ter
que usar de métodos ilegais, como roubo e matar, para seguir o que era uma
missão vital. Finalmente, em uma pensão em Copenhague recebi um convite para um
jantar no castelo de um psiquiatra lituano. Fui.
Ao chegar, tive que dizer a senha: “Wendigo”. Fomos à
sala de jantar, que tinha uma mesa Chippendale. Logo, invadiu-me um odor
adocicado e tudo se tornou preto. Recobrei minha consciência para me ver
deitado na mesa. Minha barriga estava aberta e os convidados pegavam pedaços
cortados de minhas entranhas e cozinhavam com manteiga e manjericão em pequenas
frigideiras. Pedi um pedaço. Mastiguei sem pressa e aproveitando cada instante
de consciência de meu sabor. Deliciei-me. Murmurei: “Carne de minha carne...” e
dormi o sono de Sileno, o mais sábio dos sátiros.
Conto escrito para o encontro de 09/06/2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura”
(http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal.
Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio”
(http://multiconto.blogspot.com.br/), em parceria com o poeta Henrique Santos.
Colabora como resenhista para o site “Boletim Leituras”. Mantinha o blogue
“Poema Diário” (http://pordiaumpoema.blogspot.com.br/), em que publicou poesias
de autores diferentes. Organizou as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed.
Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em
parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito e meio. Participou como
autor dos livros “Clube da Leitura: modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1”
(publicação independente), “Clube da Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto
G” (Multifoco), “Caneta, Lente & Pincel” (Ed. Flaneur), “Veredas: panorama
do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio).
kkkkkkkkk
ResponderExcluirExcelente desfecho pra um comedor compulsivo de palavras viscerais.
Sugiro degustar uma simples porção de batatas fritas.
Um beijo.