Transtorno de ansiedade - Marco Antonio Martire
Transtorno de ansiedade
Naquela noite fazia aniversário e discursava
feito uma poetisa.
Os preparativos para a festinha em
seu apartamento devem ter dado trabalho, havia muita comida e a casa estava de
verdade impecável. Tanto esforço foi recompensado, pois a galera compareceu em
peso, numa animação tremenda, curtiam todos a música e os papos agradáveis. Quando
Natália percebeu o sucesso, que a festa funcionava como tinha imaginado, largou
os discursos e afetos de lado e deixou-se levar por um gostoso devaneio na
varanda. Fechou a porta para fumar, não percebeu nada durante uns minutos,
viajou na paisagem noturna que a cidade lhe dava de presente.
Natália tinha uma vida boa.
Seu emprego não era o melhor, era o
possível, mas rendia um bom salário, que pagava as despesas do apartamento e
ainda rendia uma bela liberdade: comprava quase tudo que queria e também viajava.
Uma, duas viagens por ano, sozinha ou acompanhada.
Não tinha dificuldades para conseguir
namorados. Não imaginara que Mauro viria à festa, convidara por convidar. Findo
o romance entre os dois, quando o trocou pela Bia, soube que ele andava em
depressão. Natália não se culpava absolutamente, achou até meio machista aquela
depressão, ser trocado por mulher era o que certamente deprimia o seu ex. Antes
dela, Mauro trocava tanto de namorada que assumir a relação até a incomodara. Mauro
tinha amigas em todos os cantos. Ver que ele já era capaz de se divertir na
presença dela, na casa dela, a libertava de inúteis preocupações.
Já Bia não viera mesmo, Natália fizera
questão de não convidar. Deixara a possibilidade em aberto, a depender de um
acaso fortuito a partir do recente rompimento entre as duas, como se esperasse
no fundo que alguém a trouxesse por livre e espontânea vontade. Não funcionou a
estratégia, mas a ausência dela não trazia qualquer mágoa, Natália sentia-se livre,
redimida pelo prazeroso sucesso cotidiano.
Pensava que não havia nenhum mal em desprezar
a importância de Bia em sua vida quando notou a falta do som alto e alguém da festa
invadiu o bem estar de sua varanda. As notícias não eram boas: Mauro suava frio
na cozinha, levava as mãos ao peito, respirava como se condenado. Dizia que era
um ataque de ansiedade. Mandaram perguntar a Natália se tinha algum remédio, um
comprimido guardado que resolvesse a questão.
- Não tenho, dá maconha pra ele.
Já haviam tentado aquela salvação,
mas Mauro rejeitara o baseado depois de duas tragadas. O ataque piorou com a
erva, o pessoal não sabia o que fazer. Mauro estava ficando verde.
- Gente, chama uma ambulância e
pronto! - disse a dona da festa.
Assim foi feito. Mauro permaneceu na
cozinha, amparado por uma turminha de melhores amigas. Natália continuou de pé na
varanda, um pouco confusa, o mal estar alheio não estava nos planos. Esticava o
olhar para dentro da casa de vez em quando. Acendeu outro cigarro, tentava compreender
o significado daquele ridículo showzinho de seu ex. O clima da festa deu uma
azedada, o som baixou talvez para sempre e as conversas perderam o tom animado.
Mantiveram o Mauro na cozinha ao lado da cerveja no gelo.
O tempo passava e a ambulância nada.
Mauro não aparentava melhora. Natália foi vê-lo somente uma vez, de longe seus
olhares tocaram-se feito plumas, não encontraram o que dizer, ela não teve
pena. Voltou para a varanda, a varanda se tornara sua fortaleza.
Queria conseguir reclamar mas um
sentimento cretino de solidão a calava. Queria voltar para aquele devaneio de quase
meia hora atrás, o cenário era o mesmo, ainda que nada estivesse no mesmo lugar.
O fricote repentino de seu ex atravessara a paisagem noturna da cidade como uma
discreta chuva que empurra os pedestres para debaixo dos cobertores. Que
fizessem amor discretamente em seus quartos a salvo da friagem, Natália queria aproveitar
com seus convidados aquela noite.
Ninguém mais na festa era doente, nem
esquizofrênico ou já esclerosado, ninguém era declarado paciente ou cliente de péssimo
terapeuta, ninguém alimentava uma convicção semissecreta de ser desprezado na
multidão. Ninguém. Eram todos sãos. Esperavam como Natália que o mal passasse,
que fosse culpa do vento frio, do som alto ou da poluição noturna, que fosse
culpa do pavio curto.
Natália só abandonou a varanda quando
a ambulância chegou. Ela mesma abriu a porta para os médicos. Queria muito
festejar, precisava celebrar a vida, os sonhos e as ilusões desmedidas, os
devaneios desperdiçados.
Por um segundo, desejou que Mauro sofresse
é de um infarto mortal. Estava de saco cheio.
Mas o ex sofria de um transtorno de
ansiedade mesmo.
Conto escrito para o encontro de 15/
09/ 2015
Marco Antonio Martire é carioca,
formado em Comunicação pela UFRJ. Já publicou os contos de “Capoeira angola
mandou chamar” e a novela “Cara preta no mato”, esta em ebook pela Saraiva.
Escreve crônicas para a Rubem (www.rubem.wordpress.com)
e resenhas para o Cabana do Leitor (www.cabanadoleitor.com.br).
É fã do Clube da Leitura.
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