Por quê? - Walter Macedo Filho



Por quê?

Quando chegou de volta em casa, Juliana se deu conta de que havia largado o menino na instituição de caridade, ao invés de deixar as roupas que levara para doar. Sem dinheiro para a condução, sem vontade de voltar àquele lugar tão longe e sem tempo para isso - porque ainda precisava preparar o jantar antes da chegada do marido - Juliana resolveu abandonar o menino e passar a cuidar das roupas que voltaram com ela. Concluiu que assim teria muito menos trabalho e despesas. Sentiu-se bastante feliz com o futuro que começava a construir. Aquela felicidade fez com que se esquecesse do jantar. Foi para o quintal lavar as outras roupas que não tinham ido para doação e que ainda estavam sujas. A partir daquele momento não mediria esforços para se tornar um exemplo de dedicação no trato com a nova família que acabara de adotar. Juliana caminhou no terreno de terra batida com muita dificuldade. Ao chegar na edícula onde ficava a lavanderia, virou-se e ficou surpresa ao ver que brotavam chumaços de grama nas pegadas que deixara para trás. Aquilo a preocupou bastante pois tinha certeza de que o marido a repreenderia, podendo até mesmo castigá-la. Aflita, procurou a enxada que tinham em casa, guardada em algum lugar. Viu que a ferramenta estava encostada num canto, atrás da máquina de lavar. Pegou a enxada e começou a remover a grama. Arrancava os últimos vestígios de vegetação quando notou que a enxada batera em alguma coisa. Abaixou-se e, com bastante cuidado, retirou a terra com as mãos. Eram ossos. Achou prudente procurar ajuda, mas não havia ninguém por perto. Pensou em chamar a vizinha. Quase desistiu ao lembrar que a mulher dormia já fazia sete meses. Sem outra opção, foi até lá, tocou a campainha 85 vezes até que a mulher, com a cara um pouco amassada, veio atender. Explicou o que tinha encontrado no terreno. A vizinha logo sugeriu que chamassem os investigadores da polícia do Suriname, especializados em alguma coisa, que ela não se lembrava o quê. Os homens do Suriname chegaram em seguida, com suas fardas de plástico transparente. Cercaram a casa e, em movimentos que mais pareciam um filme, arrastaram-se até o quintal. Terminada a movimentação da tropa, o comandante perguntou para Juliana (em uma língua incompreensível) se por acaso teria sacos plásticos guardados, pois alguns de seus soldados estavam com as fardas rasgadas por causa do deslocamento pelo chão. Mas Juliana era uma mulher de consciência ambiental exemplar. Nunca pegava sacos plásticos no supermercado e muito menos os guardava em casa. Juliana lembrou-se dos pedaços de plástico-bolha que usara na mudança. Entrou em casa e, depois de algum tempo, retornou com o material, que entregou ao comandante, junto com uma tesoura e um rolo de fita-adesiva. A tarefa de remendar os soldados foi bastante demorada. Terminada a missão, só então o comandante deu as ordens e o grupo começou a cavar, cavar, cavar... Por fim, toda a ossada estava exposta. Foi um susto! Tratava-se do esqueleto de um anjo. Não havia como confirmar sua idade, mas dava para notar que era um anjo adulto. A vizinha tinha certeza de que era um anjo selvagem, e não desses criados para abate que se compra em qualquer açougue. O comandante ficou bastante surpreso com a descoberta, a ponto de engasgar quando tentava falar alguma coisa na tal língua ininteligível (que nem mesmo seus soldados entendiam). Ao perceber que tudo aquilo poderia complicá-los, o comandante deu outra ordem para a tropa e o grupo militar se liquefez, escorrendo de uma só vez pelo ralo do tanque. Juliana virou-se, e a vizinha dormia de novo. Com dificuldade, puxou-a pelas pernas largando-a na entrada da casa, pois, ao sair, a mulher fechara a porta com a chave dentro. Juliana olhou para o céu e viu o quanto o tempo corria, pois já estava amanhecendo, dois valetes tinham sido descartados, os outros dois formaram as canastras e seu cachorro tinha morrido há quase seis meses, quando ainda moravam no apartamento. Voltou sozinha ao quintal, agachou-se na frente do enorme buraco e permaneceu por muito tempo olhando fixo para a ossada. Passadas algumas horas, suspirou fundo, deitou-se na terra, apoiou a cabeça nas mãos e falou para si mesma: “por quê?” E, de imediato, uma voz interior respondeu: “por que o quê?”

Conto escrito para o encontro de 15/ 09/ 2015


Walter Macedo Filho é dramaturgo, jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural. Integrou o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho. Como gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca Dicró, Biblioteca Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu primeiro livro de contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras. Atualmente escreve o roteiro para o novo filme do diretor Paulo Thiago após ter desenvolvido o argumento.

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