O mendigo nu - José Fontenele
O mendigo nu
Há dois dias não me tolero. Há dois dias
duvido dos meus olhos como quem precisa utilizar um óculos mais nítido para
enxergar a realidade. Tudo por causa do mendigo nu. Anteontem, quarta-feira de
verão, finquei uma gelada na praia de Ipanema perto do Posto Nove. À frente, a
majestade do mar e suas curvas rubras no horizonte antecipavam as linhas
esvoaçadas do pôr-do-sol. O visual reanimava minhas esperanças frouxas e entre
uma conversa e outra com amigos transitórios, permaneci absorvendo o melhor do
instante. Os outros frequentadores eram jovens nas mais variadas atribuições:
jogando futebol, pegando uma onda e curtindo a realidade ilusória de um
baseado. Os tiozinhos de sunga preta jogando vôlei de praia também estavam
perto, entretidos com o esporte e reclamando quando o vento mudava
repentinamente de direção e espalhava o cheiro abafado da erva na direção
deles. O confronto era inevitável. Mas eis que ele surgiu. Vindo de algum lugar
oculto da avenida, um mendigo ficou na direção do vento e denunciou sua
presença. O cheiro de roupa amassada e suor concentrado subjugou a essência do
baseado e logo eu estava cuspindo para não vomitar. Persegui a fonte do fedor
planejando escapar daquelas lufadas pútridas. Entretanto, ele distanciou-se.
Descalço, vestindo uma calça de trapos negros e uma blusa de negros trapos,
errou pela areia desequilibrado, apoiando os braços em corrimões ilusórios e
bengalas inexistentes. Não vi a sua face. O cabelo era minguante, ralo e cinza.
Não carregava nada e por isso imaginei que sua base secreta era por aquelas
ruas ou que chegara ali aos trancos e barrancos, passando por catracas com a
leniência do motorista ou a simpatia de algumas pessoas e suas moedas. Fosse o
que fosse, tentar estabelecer um passado não alteraria minha surpresa quando o
percebi tirar a roupa. Ele havia ultrapassado o campo imaginário de futebol e
logo o resquício de uma onda lhe molhou os pés. Parado, agachou-se como
naqueles programas quando a pessoa vê o mar pela primeira vez. Nada o conteve.
Como se estivesse sozinho, o homem resolveu tirar a roupa sem nenhum pudor.
Pegou os trapos da calça e deitou no chão; rasgou a camisa por uma de suas
dezenas de buracos e jogou no mesmo local. Ele não tinha cueca, somente uma
senil bunda magrela e arruinada. Naquele momento eu cuspi no chão como quem pressente
o vômito. Olhei para os outros esperando uma reação mais proibitiva quando ao
repentino streeptease e não enxerguei
nada. Ao retornar o foco ao mendigo nu, ele estava limpando as pernas com as
ondas; em seguida pegou a areia e passou nos membros como um sabonete adstringente,
para logo limpá-los com o mar. Repetia o processo e eu intensificava minha
perplexidade, pois ninguém ficou indignado com o movimento. Nenhuma palavra de
ordem. Algumas mulheres estavam no campo de visão e por isso imaginei que um
atleta iria lá parar o mendigo e fazer sua fama, mas nada aconteceu. Ressabiado,
tratei de procurar o salva-vidas e denunciar aquela cena de atendado ao pudor.
Encontrei o homem perto do quiosque. “Tem um mendigo nu na praia. Atentado ao
pudor.” “Tá maluco, rapaz, tá dizendo que tem um mendigo nu na minha praia?
Aqui não tem nada disso não! Curte tua cerva.” O desgraçado riu e eu fiquei
apontando para o mendigo tomando banho na borda do mar. “Não estou vendo nada,
está tudo sossegado, vai ali pro canto bater palma para o pôr-do-sol e tirar
uma selfie, vai.” Sem sucesso,
caminhei até duas mulheres que estavam a uns vinte metros do mendigo nu.
Interrompi a conversa delas com um sorriso inquisitivo. “Com licença, vocês
estão vendo o mendigo nu ali? Não acham isso um absurdo?” “Não estou vendo
nenhum mendigo nu não, gato. Você está vendo, Verônica?” “Não, nenhum. Mendigo
nu? Na praia? Não.” Novamente fiquei irritado. “Tem um mendigo ali, tomando
banho de mar como quem ri da nossa cara.” “Não estou vendo nada disso não.
Aliás, será que é um mendigo mesmo, ou talvez não seja um artista fazendo uma
performance contra os podres valores visíveis da nossa sociedade?” “Ahn? Que
artista que nada, é um mendigo!” “Talvez um drone esteja gravando para o
Youtube”, a mulher ao lado completou. “Que nada, isso não é aquela anedota de
roupas que só os inteligentes conseguem ver. É uma porra de um mendigo nu, é
atentado ao pudor!” “Relaxa, gato, curte a brisa e o pôr-do-sol.” Foi a
resposta que ouvi. Frustrado e com raiva, interrompi a partida de futebol para
perguntar se eles enxergavam o mendigo nu brincando na água. Novo insucesso.
Dessa vez os caras tiraram sarro dizendo que eu estava fumando baseado de
tabela e começando a ver maluquice. Os tiozinhos de sunga preta também
desconheciam a cena. Em seguida começaram a se perguntar se alguém já tinha
visto um mendigo nu e zombaram que só eu mesmo. Cansado de ser piada, retornei
ao meu lugar e mantive os olhos no mendigo nu saindo da onda em direção aos
trapos na areia. Lentamente ele se cobriu e ninguém o encarava. Os passos dele
rasgaram o campo de futebol imaginário e a desavisada bola o atingiu. “Ei,
mendigo, sai do campo e deixa a bola. Vai procurar uma marquise!”, atacou um
dos jogadores. No momento seguinte eu tremi.
Conto escrito para o encontro de
01/ 09/ 2015
José Fontenele é escritor e jornalista.
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