Mote do encontro (15 /09/ 15)
mote lido por Walter Macedo Filho
A Poética do Devaneio
O devaneio é um fenômeno
espiritual demasiado natural - demasiado útil também para o equilíbrio
psíquico - para que o tratemos como uma derivação do sonho, para que o
incluamos, sem discussão, na ordem dos fenômenos oníricos. Em suma, é
conveniente, para determinar a essência do devaneio, voltar ao próprio
devaneio. E é precisamente pela fenomenologia que a distinção entre o sonho
e o devaneio pode ser esclarecida, porque a intervenção possível da
consciência no devaneio traz um sinal decisivo.
Perguntou-se se havia
realmente uma consciência do sonho. A estranheza de um sonho pode ser tal que
nos parece que um outro sujeito vem sonhar em nós. "Um sonho me
visitou." Eis a fórmula que assinala a passividade dos grandes sonhos
noturnos. Esses sonhos, é preciso reabitá-los para nos convencermos de que
foram nossos. Posteriormente fazem-se deles narrativas, histórias de um outro
tempo, aventuras de um outro mundo. Longas vias, longas mentiras. Com
freqüência acrescentamos, inocentemente, inconscientemente, um traço que
aumenta o pitoresco de nossa aventura no reino da noite. Já notaram a
fisionomia do homem que está contando o seu sonho? Sorri do seu drama, dos seus
terrores. 1 Diverte-se com eles e quer que você também se divirta
. O contador de sonhos às vezes desfruta de seu sonho como de uma obra
original. Vive nele uma originalidade delegada, e também fica surpreso quando
um psicanalista lhe diz que outro sonhador experimentou a mesma
"originalidade". A convicção, por parte de um sonhador de sonhos,
de ter vivido o sonho que está contando não nos deve iludir. É uma
convicção relatada, que se reforça cada vez que se conta o sonho. Certamente
não há identidade entre o sujeito que conta e o sujeito que sonhou. Uma
elucidação propriamente fenomenológica do sonho noturno é, por isso, um
problema difícil. Teríamos, sem dúvida, elementos para resolver esse
problema se desenvolvêssemos melhor uma psicologia e, con- secutivamente, uma
fenomenologia do devaneio.
Em vez de buscar sonho no
devaneio, buscaríamos devaneio no sonho. Existem faixas de tranqüilidade em
meio aos pesadelos. Robert Desnos observou essas interferências entre o sonho
e o deva- neio: "Embora adormecido e sonhando, sem poder determinar a
parte exata do sonho e do devaneio, eu guardo a noção do cenário." Ou
seja, o sonhador, na noite do sono, reencontra os esplendores do dia. Então
ele está consciente da beleza do mundo. A beleza do mundo sonhado lhe devolve,
por um momento, a sua consciência.
E é assim que o devaneio
ilustra um repouso do ser, que o devaneio ilustra um bem-estar. O sonhador e
seu devaneio entram de corpo e alma na substância da felicidade. Numa visita a
Nemours, em 1844, Victor Hugo saíra ao crepúsculo para "ir ver uns
arenitos bizarros". A noite chega, a cidade se cala, onde está a cidade?
Aquilo não era nem uma cidade, nem uma igreja, nem um rio, nem cor, nem
luz, nem sombra; era devaneio. Fiquei imóvel por muito tempo, deixando-me
penetrar suave- mente por esse conjunto inexprimível, pela serenidade do céu,
pela melancolia da hora. Não sei o que se passava no meu espírito, nem
poderia dizê-lo; era um desses momentos inefáveis, em que sentimos em nós
alguma coisa que adormece e alguma coisa que desperta.2
Assim, é todo um universo
que contribui para a nossa felicidade quando o devaneio vem acentuar o nosso
repouso. A quem deseja devanear bem, devemos dizer: comece por ser feliz.
Então o devaneio percorre o seu verdadeiro destino: torna-se devaneio
poético: tudo, por ele e nele, se torna belo. Se o sonhador tivesse "a
técnica", com o seu devaneio faria uma obra. E essa obra seria grandiosa,
porquanto o mundo sonhado é automaticamente grandioso.
1. Muitas vezes, confesso, o
contador de sonhos me aborrece. Seu sonho talvez pudesse interessar-me se fosse
francamente fabricado. Mas ouvir uma narração gloriosa de sua insanidade!
Ainda não consegui elucidar psicanaliti- camente esse aborrecimento durante a
narração dos sonhos dos outros. Pode ser que eu tenha conservado rigores de
racionalista. Não sigo documente a narra- ção de uma incoerência
reivindicada. Suspeito sempre que parte das tolices rela- tadas sejam tolices
inventadas.
2. Victor Hugo, En voyage. France et
Belgique. Em L 'homme qui rit (t.I,
p. 148), Victor Hugo escreve: "O mar observado é um devaneio."
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antonio de Padua Danesi. WMF Martins Fontes, 2010.
Gaston Bachelard, filósofo e ensaista francês. A
teoria da relatividade deita por terra as suas ideias sobre física, o que o
terá levado a estudar a filosofia, obtendo uma segunda licenciatura em letras
em 1920. Tendo-se doutorado em 1927,com a tese Ensaio sobre o Conhecimento
aproximado e Estudo sobre a Evolução de um problema da física, a
propagação térmica nos sólidos (a tese é premiada). Em 1930 iniciou uma
carreira regular de professor universitário. Recebe a Legião de Honra em 1951 e
o Grande Prémio Nacional das Letras (1961).
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