– Meia-Noite na Estação das Miragens – ou O Testamento (Indiscreto) de William Blake - Márcio Couto
– Meia-Noite na Estação das Miragens –
ou O Testamento (Indiscreto) de William Blake
Sabe-se
que durante seus últimos dias, o poeta, tipógrafo e pintor, William Blake,
levava uma vida muito humilde em Fountain Court – Londres; sua família não lhe
herdara nenhuma posse ou dívida. Curiosamente seu testamento havia sumido do
calhamaço original de declaração de bens e permanecia perdido... Até então:
pois agora o tenho em mãos – peço humildemente às senhoras & senhores
literatos reunidos aqui hoje que atentem às palavras a seguir:
Dediquei
minha vida às bestas em transe. Meus desejos afugentaram-me da brisa da
complacência e hoje tenho da consciência a certeza de uma morte vazia, sendo
meu único consolo a ausência da determinação – que é a pedra angular da obsessão.
Esculpi da avareza uma verdade inconcebível: a de que sou negação. Há duas modalidades de
mal-estar comandando cada um de nossos vícios: chamam-se ‘sintonia’ e
‘singularidade’. O mal-estar da sintonia culmina na castração da vaidade:
elimino-me como indivíduo a fim de propor unidade com o infinito, sincronia com
o universo; o segundo mal-estar é precisamente o oposto, e remonta à histeria
da criação: tenho de criar para afirmar-me singular, sendo a criatividade uma
renúncia à realidade premeditada – logo o ato de criar trata-se de um exercício
de transgressão a uma existência passiva. Enquanto altero o mundo ao redor
constato minha eterna solidão, portanto o que me define é o fracasso da
aceitação do mundo tal como ele é: e uma vez encerrado em minha própria cólera,
amargo a condenação de uma sucessão de vertigens – protegido pela sina dos
inúteis embarco rumo ao cristal de minha essência, e na jornada me perco em
febres e convulsões, e me aqueço da farsa e componho do desespero uma revelação:
eu estou imolado no ventre de meu luto.
Enfim
guardo-me unicamente ao meu próprio cadáver, nada além dele pode embrutecer-me
da cegueira proposta pela luz, que omite a tudo por meio do fel das cores:
extraio do devaneio a triste virtude da lucidez. Eu, Sir William Blake, deixo
em testamento a meus irmãos de oculto este sangue híbrido que se arrasta por
minhas veias: usem-no exclusivamente para fins tóxicos: esfreguem-no sobre as
paredes das catedrais e os lábios das crianças tal fosse um batom vulgar: que meu
sangue arda nas bocas puras para que tenham um vislumbre da cópula obscena que
as gerou. Nada é inocente, nem mesmo as mais virgens centelhas de carbono
confinadas nas constelações mais remotas nascem castas ou escapam da agonia, e
graças aos deuses que a pureza é uma mentira: pois desfila ao seu redor toda
uma horda de ignorantes – traduza ‘culto à pureza’ como ‘orgia do preconceito’.
À
minha querida esposa reservo um pilar torto de poesias proibidas: e todas de
cunho profano! tal como devem ser – poesia só rima bem com heresia. Espero que
a leitura insegura de cada estrofe lance-a do alto de sua torre de angústias
mesquinhas, e uma vez abandonada no seio de suas paixões, que decaia numa
espiral até se estatelar sobre o piso frio de sua própria alma: a essa altura,
já por completo exorcizada. Eu que a amo tanto...
Meus
filhos herdarão a aspiração congênita pelo oculto; disfarçada de devassidão sob
as artérias, essa intransigência florescerá adorável como uma ametista imunda.
Eles sobreviverão à demência de uma idade que remonta ao clássico, mas que o
ultraja preservando unicamente seu mais decadente aspecto. Seus netos se
erguerão contra uma era de guerras senis, onde o delírio dos propósitos – essa
vigarice que inflama o espírito – será o bastião de ambas as faces do campo de
batalha. E todos sofrerão exceto eles, pois assumirão para si a obsolescência
dos ideais, e errarão vadios de mãos dadas ao amor incondicional pela vida, e
celebrarão a caridade do mendigo, e a sabedoria da prostituta. Para minha linhagem
infame reservo centenas de gravuras não-concluídas, compostas sob o signo da
Divina Comédia: esta elegia ao devaneio que foi feita a partir de sua vertente
mais repulsiva: a da fantasia lírica – e que Dante astutamente rebaixou a verso
épico.
Pesa-me
nos dedos um miasma aterrorizante, que me desnuda os ossos e nervos,
pretendendo paralisar-me o coração. A morte é uma centopéia sob nossa sombra
fresca enquanto cozinhamos no deserto do destino. Porém não vou reclamar,
apesar de ter levado uma vida medíocre, satisfaço-me hoje com esse muito pouco
que não fiz por mim: minha obra; vazia se comparada a dos gênios de meu tempo,
mas que me agrada pelo embrulho proporcionado aos de estômago frágil: só quem
sofre de diarréia me compreende, pois escrevo sobre o escândalo do existir, e
meu arsenal é a crise da esperança.
Reparto
meus textos ruins, e delírios tipográficos, com cada um dos cavalheiros
literatos sentados frente a este gentil interlocutor. Sou solidário aos
senhores tanto quanto legitimamente os desprezo. Se um dia nos reunirmos, que
seja sob uma chuva de fogo, pois as épocas de paz não interessam à literatura.
Despeço-me aqui; desejo-lhes uma história de pesadelos para que jamais se
deparem com a vilania do despertar. Nos vemos.
Assinado:
W.B.
Conto escrito para o encontro de
15/ 09/ 2015
Márcio
Couto faz livro, arrisca poesia, e vez ou outra é pintor. No Rio nasceu e se
desfolhou feito planta, só que diferente.
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