Na língua dos golfinhos - Beatriz Moreira Lima



Na língua dos golfinhos


Eles eram como meus irmãos. Nasci com eles. Minha mãe queria um parto natural, na água, com golfinhos... Nós morávamos na praia. Meu pai pescava e minha mãe trabalhava com ervas. Segundo minha mãe, o parto foi um sonho. Não sentiu dor alguma. Os golfinhos a ajudaram, emitindo sons em frequência tranquilizadora.

Desde criança, eu nadava com eles na praia. Mike, Bill e Tom eram meus melhores amigos. Minha mãe dizia que eu falava a língua deles. Eu não sei. Se era minha mãe quem afirmava, devia estar certa, não é mesmo? Quando me pediam para traduzir os “guinchos” ou “pios” dos golfinhos, eu traduzia. Não tinha certeza se entendia ou se imaginava, mas isso não tinha importância. Eu era especial.

Uma vez veio um povo da televisão fazer um programa comigo. Eu nadei com os golfinhos, “traduzi” o que diziam, falei com eles, do meu jeito, e todos ficaram convencidos de que eu falava “golfinhês”.

Às vezes apareciam alguns golfinhos diferentes na praia. Brincava com eles, também, mas não ficavam por muito tempo. Só os meus amigos viviam permanentemente na praia onde eu morava. Todo dia, no final da tarde, ia dar um mergulho com eles. Como a praia era bem deserta, na maior parte das vezes, nadava nua.

Até que, num fim de tarde de janeiro, estava nadando com Mike há alguns minutos, quando Bill e Tom se juntaram a nós. Tudo transcorria normalmente, até que, de repente, Bill partiu para cima de mim, com seu pênis ereto. Não era a primeira vez que isso acontecia, os golfinhos têm disso... Só que dessa vez foi diferente. Ele parecia mais obstinado, não era brincadeira...  Tentei me proteger junto a Mike, mas ele, ao invés de me ajudar, bloqueou minha passagem. Tom fechou o círculo e me vi encurralada entre os três.

A essa altura, já estava bastante assustada. Não entendia os guinchos e não conseguia me fazer escutar. Desisti do golfinhês e gritei por socorro, mas a praia estava deserta. Assim mesmo, não perdi as esperanças; afinal, se conseguisse chegar à areia, poderia fugir. Nadei com as minhas últimas forças em direção à praia; os golfinhos, ao invés de tentarem me impedir, foram me escoltando.

Mas, quando finalmente me ergui sobre meus pés, com a água na altura da cintura, eles me derrubaram e jogaram de costas na areia. Enquanto eu lutava para manter a cabeça fora d´água, Bill pulou em cima de mim. O peso do cetáceo sobre o meu corpo me empurrou para o fundo. A última coisa de que me lembro é de uma dor lancinante no baixo ventre, como se me rasgasse ao meio. Desfaleci.

Quando acordei, já era noite. A maré tinha baixado e estava jogada na areia. As costas completamente raladas. De minha vagina escorria um filete de sangue. Levantei-me com todo o cuidado. Procurei meu vestido, que havia deixado sobre uma pedra próxima do acesso à estrada. Pela altura da lua, não deviam ser mais de oito da noite. Lua cheia, significando que meus pais não estariam à minha espera. O ritual xamanista começava às oito, do outro lado do vilarejo. Melhor assim, não saberia como explicar a eles o meu estado.

Entrei em casa pela porta da cozinha e fui direto para a cama. Na manhã seguinte, acordei dolorida, ralada e fedida. Os golfinhos exalam um cheiro forte, que gruda na pele. Tirei a roupa de cama e enfiei em um saco, que guardei no canto do armário, para jogar fora mais tarde. Depois me enfiei debaixo do chuveiro e lavei-me longamente, ignorando a ardência provocada pelo sabonete em minhas feridas.

Quando desci para o café da manhã, estava razoavelmente apresentável. Minha mãe percebeu que havia algo de errado, mas aceitou a minha explicação. Uma história vaga sobre como havia prendido o pé em uma alga e quase me afogado, sendo resgatada por Mike, que teria me levado até a areia. Meus pais não acreditariam na verdade. Eu mesma já tinha dúvidas sobre os acontecimentos da véspera.

Parei de nadar com os golfinhos. Atribuí a mudança de hábito a um trauma pelo quase afogamento. Passei a ter pesadelos, dos quais despertava aos gritos, no meio da madrugada. Então minha menstruação atrasou. Ignorei o quanto pude, não queria pensar sobre o assunto. Meu apetite aumentou e logo percebi que era esse o caminho para disfarçar as alterações do meu corpo. Meus pais concluíram que estava deprimida. Foi assim que me levaram ao primeiro psiquiatra. Mas eu não abri a boca. Resisti a seis sessões sem dizer palavra. Ele desistiu de mim.

Quando as dores começaram, era noite de lua cheia e senti um chamado do mar. Nunca mais havia mergulhado. Mas, era como se estivesse possuída. Desci até a praia, tirei a roupa e entrei na água. Os golfinhos estavam à minha espera. Não houve mais dor. Sob a luz da lua e os cuidados dos cetáceos, pari uma sereia. Ela saiu nadando por entre as minhas pernas. Corpo de bebê, rabo de peixe e longos cabelos negros. Montou nas costas de Bill e os quatro partiram para o fundo, em direção à lua que brilhava no horizonte.

O senhor pode não acreditar nisso tudo. Eu mesma, nem sempre acredito. Sonho, devaneio, loucura ou a mais fantástica realidade, pouco me importa. Minha filha vingará o que sofri, arrastando para o fundo do mar os machos tesudos que pretenderem possuí-la.


Conto escrito para o encontro de 15/ 09/ 2015




Beatriz Moreira Lima nasceu em 1970, é funcionária pública, mas sempre gostou de escrever. Teve um filho em 1998, publicou um livro em 2008 (“Tempos Férteis”, editora 7 Letras) e até 2018 pretende plantar uma árvore para completar a sua minibiografia. Enquanto isso, frequenta o Clube da Leitura.

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