O retrato de David Z. - Carmen Molinari

O retrato de David Z.


Senhoras e senhores, boa noite. Meu nome e Bella Freud, e agradeço a prestigiosa Casa Sotheby’s o convite para abrir esse leilão falando um pouco de meu pai, o pintor Lucien Freud, e da estrela desta noite, esse fantástico quadro, “Retrato de David Z.”, pintado por ele e que ate agora permanecia desconhecido do grande publico, e mesmo da critica especializada. Há seis meses atrás David faleceu, e sua sobrinha e herdeira do espólio, Sara Z., consciente da importância da obra, torce para que ele seja adquirido por um dos tantos e importantes museus aqui presentes.

Como não e segredo para ninguém, meu pai foi um homem de muitos amantes, homens e mulheres. Minha mãe também não foi casada com ele, tiveram um caso intenso porem passageiro. Nem por isso ela abriu mão do meu direito de ter um pai.

A partir dos meus sete anos, uma vez por semana ela me deixava por duas horas no ateliê, para que nos conhecêssemos melhor. Quem me  recebia, invariavelmente, era o querido David Z., o secretário de papai. Me acomodava em sua própria escrivaninha, me munia de papéis e lápis de cera e depois me trazia uma caneca de chá com leite e biscoitos. Às vezes, quando meu pai sumia no quarto com algum modelo, ele me levava para dar uma volta em Nothing Hill, até as coisas se acalmarem. Eli, o cão de raça de papai, sempre ia conosco. Tenho belas memórias dessa época.

Por quase 30 anos, ate a morte de meu pai, David foi seu mais fiel escudeiro, e seu modelo mais requisitado. Ele aparece em diversos quadros, muitas vezes com o cão Eli a seu lado, mas que fique claro: eles nunca, nunca tiveram nada. O senso de profissionalismo de David jamais permitiria, e alem disso ele tinha uma característica totalmente nova e interessante para Lucien: era totalmente assexuado.Ele era grandalhão e poderia até ser considerado bonito, mas a ausência total de desejo e malícia faziam parecer que ele tinha algum tipo de retardo, o que não era absolutamente verdade.

Bem, isso era o que se sabia até agora.

Como vocês sabem, meu pai gostava de pintar nus. Em todos os quadros em que posou como modelo David aparece nu, com as pernas abertas, o sexo exposto claramente, com aquela entrega dócil que meu pai tanto admirava nele. A carne branca e rosada, as veias azuis-esverdeadas, e um certo negror em todo o ambiente. Havia algo de El Greco no trabalho dele, sempre achei isso.

Mas o que esse quadro traz de diferente, de totalmente diferente, é o rosto de David. Mais que o rosto: sua expressão. Acredito que seja esse o motivo desse quadro ter permanecido praticamente oculto por todos esses anos.

Do pescoço para baixo vemos o David de outros retratos: nu, jogado sobre uma cama, ou sofá, e com as pernas abertas. Mas sua expressão, dessa vez, chega a nos chocar. Não há a costumeira inocência nela, ao contrário. O que vemos é uma expressão de luxúria, um esgar na boca que sugere uma espécie de amoralidade, os olhos semirevirados quase em um gozo que não nos remetem a nenhum êxtase, mas a algo sujo, quase demoníaco.

O que me leva a pensar: será que em algum momento meu pai viu essa expressão no rosto de David? Ou será que pela convivência suspeitou desse lado oculto nele?

Poderia ser uma espécie de vingança contra tanta pureza?

Nunca saberemos, já que ambos estão mortos.

Mas o que ficou muito claro para mim, vendo essa obra fantástica e impactante, é que a nudez do ser humano não tem nada a ver com a nudez do seu sexo. O que realmente desnuda o homem, e o revela, é a expressão do seu rosto.

É na expressão do seu rosto que o homem revela, mesmo inconscientemente, mesmo a sua revelia, o que tem de melhor e de pior, de erótico ou de santo. É como se existisse aí uma linguagem ainda não codificada por todos, de certa forma secreta, ainda que universal.

Linguagem essa buscada por muitos e alcançada por poucos. Linguagem essa que só os grandes artistas, os gênios, os mestres, conseguem desvendar e nos revelar.

Como fez meu pai, magistralmente, neste quadro, O retrato de Dorian Z. Perdão, digo O retrato de David Z.

Muito obrigada, boa noite a todos e um ótimo leilão.


Conto escrito para o encontro de 01/ 09/ 2015




Carmen Molinari e uma leitora compulsiva e uma escritora pontual.

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