Nudez - Daniel Russell Ribas

Nudez


Viemos a este mundo em completo desalento. Nus, desprotegidos, somos jogados na terra e obrigados a lidar com ela. Esse processo envolve a cobertura do corpo, primeiro externo e, em seguida, interno. A forma de sobreviver é se cobrindo, pois os elementos jogam contra você, querem arrancar sua superfície até atingir o âmago. Um dia, como o rei, você acorda e percebe que está nu. Está desprotegido e sentindo o medo primordial de quem vê o mundo pela primeira vez. Porque é exatamente isso o que acontece. Você vê o mundo como ele é, e descobre que não soube lidar com ele. Nunca precisou, nunca buscou. Agora, uma luz surge e tira todo o ar.

Você está sozinho. Nudez é expor uma intimidade que o mundo reprova. O nu é sempre visto como algo inferior. Não tem dinheiro para comprar roupas, não tem sanidade para saber que é indecente, não tem recursos para se sustentar. O ser humano que não pode comer por sua conta é uma doença sontaguiana. Não se olha, pois seu mal é um indício de nossa inevitável nudez vital, de que nossa roupa mortal um dia será retirada. O uniforme original é a manta que embala o túmulo.

Pessoas nuas geralmente fedem ou secretam. Não possuem nada a esconder. Brecht dizia que quem tem fome, não tem moral. A nudez é amoral, pois é um produto de carência e excesso. Esta heterogeneidade confunde o civilizado, que não reconhece aquele código de roupas. Ojeriza. Existe apenas para funções fisiológicas e sexuais. É um objeto de brechó a nudez. O apavorante na situação não é perceber o olhar dos outros. Mas o seu de si mesmo. E que partimos deste mundo da mesma forma como viemos, sem preparo. A nudez é um sinal de loucura. De que alguém voluntariamente saiu deste mundo. O motivo é irrelevante. Mas nada pode tirar deste a certeza de que retornou ao âmago de desconhecimento da metáfora da moda. O louco é a nudez que não se importa.

O mundo quer arrancar a sua cabeça, porque você andou nu nele e alheio. Agora é preciso se vestir, pois está frio. Estar nu não é reconhecer sua fragilidade, mas constatar que a única que permanece enquanto estamos vivos é nossa própria pele. Se sobreviver é manter-se vestido, viver é a arte de escolher a roupa adequada para cada ocasião.



Conto escrito para o encontro de 01/ 09/ 2015




Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura” (http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal. Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio” (http://multiconto.blogspot.com.br/), em parceria com o poeta Henrique Santos. Organizou as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez, pela Editora Draco. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente & Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura, vol. III”, “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio).

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