Leis - Walter Macedo Filho
Leis
Osvaldo
vestia calça e jaleco de brim grosso, verde-claro, o mesmo verde-claro e pálido
das cores da lavanderia onde trabalhava. Por causa de suas roupas, ele destoava
das outras pessoas que estavam no cartório. Segurava nas mãos alguns papeis que,
com muito esforço, tentava ler e entender o que estava escrito. Sentia um misto
de vergonha e raiva. Vergonha por descobrir que neste mundo existe um mundo de
palavras muito maior que o mundinho das palavras que ele aprendeu na única escola
que frequentou. A raiva era por conta da decisão do juiz que o obrigava a
passar para a mulher (agora ex-mulher) a pequena casa que construíra com tanto
sacrifício nos fundos do terreno que pertencia à sua família. A falta de
dinheiro, a falta de opção e a falta de noção levaram Osvaldo até Paulo.
Difícil descrever Paulo: um misto de atendente de cartório e advogado
recém-formado que, nas horas vagas, advogava causas perdidas e que, ao colocar
o paletó no encosto da cadeira, dobrar as mangas da camisa branca e afrouxar o
nó da gravata, sentia-se um astro de filmes de tribunal. Osvaldo pergunta a
Paulo, que mantinha um certo olhar de superioridade: - É só isso aqui?
–
Sim, ‘seu’ Osvaldo. O senhor leva para
casa e lê com atenção.
–
E este papel transfere a casa para ela?
Se eu assino, a casa é dela?
–
É o que diz a lei.
–
A lei... a lei... eu sei que o senhor já
falou. É que parece, assim... muito simples demais. Meio desleixado, meio nas
coxas, o senhor entende? O senhor tem ideia de quanto tempo a gente leva para construir
uma casa? Mesmo uma casinha como essa... o senhor viu as fotos... o senhor tem
ideia?
–
Não, “seu” Osvaldo, eu não tenho ideia.
– Eu sabia. Eu imaginava.
Resignado, Osvaldo continua
lendo, aproximando o papel dos olhos. – E
a menina?
–
A filha de vocês têm direito a 50 por
cento de tudo, sempre. O que o senhor está passando para sua mulher... –
Osvaldo
o interrompe: – Ex-mulher!
–...o que o senhor está passando para a sua
ex-mulher é a sua metade. Está escrito aí. A filha de vocês tem direito a
metade de tudo e o senhor e a sua mulher... quer dizer, a sua ex-mulher têm a
outra metade. O senhor tem metade da metade... e é essa metade da metade que o
senhor, assinando aí, vai passar para ela.
–
Vocês são engraçados...
Paulo,
incomodado com o comentário de Osvaldo, arruma-se na cadeira: – Não sou eu que quero... é assim que
funciona. Mas o senhor não precisa assinar nada agora. Pode mudar o que quiser.
–
Não adianta. Tenho que saber agora. Me
explica uma coisa: como o senhor sabe, a casa está no terreno da minha mãe.
Isso vem lá de trás, o senhor nem imagina. Avó, bisavó, tataravó... A gente
tinha acabado de casar e minha mãe, que gostava muito dela... dessa... deixa
pra lá... minha mãe foi que ofereceu um pedaço do terreno nos fundos pra gente
construir. Eu fui construindo, quase sozinho. Não estou reclamando. Cada um tem
seu papel. Eu recebia o pagamento... eram quinhentos tijolos. Fazia uns bicos
aqui e ali... mais um saco de cimento. Vendi uma televisão pra comprar areia,
pedra... Fui construindo... Não estou me queixando, o senhor entende? Aí ela
logo teve a menina e ficou cuidando. Tem que ser assim. E minha mãe junto,
pegando dinheiro da pensão... dando coisas para a menina... chamando a gente
pro almoço... só queria entender essa
lei, essa coisa escrita. Queria saber se o senhor entende. A casa está lá. É só
ir ver. É muito esquisito acabar assim tudo isso, todo esse trabalho, num
papel, num papelzinho... Desculpe. Mas o terreno, a minha mãe...
–
Isso tudo é outro processo... a lei...
–
Como assim, outro processo? A vagabunda
recebe a casa e fica lá, assim? E pare de falar da lei.
Um
longo silêncio se instala entre os dois. Osvaldo vira as folhas encarando
Paulo. Abrupto, retoma o assunto: – Vamos
falar a coisa clara: é que eu estou morando lá, na casa da minha mãe. E eu vejo
ela passar todo dia para a casa dos fundos... a casa que eu fiz... que eu
construí cada parede... sabe o que é isso? Aqui nesse papel diz que ela pode
fazer tudo?
–
Quase tudo, quer dizer: ela não pode
vender o imóvel... porque está no terreno...
–
Pode alugar?
–
Se quiser...
–
Mas está no meu terreno. No terreno da
minha mãe. É o lugar onde minha mãe nasceu, casou, teve os filhos... um
terreninho da família. Onde a gente tinha a nossa festa de natal... meu
aniversário... A vizinhança toda... E é só isso? Eu assino e acabou? Será que o
senhor não entende?
–
Eu entendo, “seu” Osvaldo. O senhor é que
não está entendendo... A casa está no terreno e não vai sair de lá. Mas vai
passar a ser dela. É simples assim...
–
Simples o caralho. Eu estou entendendo
tudo sim. Tudinho. E é isso que está...
Paulo
olha para o telefone celular e vê que tem uma mensagem. Pega o telefone e pedindo
licença a Osvaldo. Digita alguma
coisa no celular, dá uma risada contida, põe o aparelho sobre a mesa, cruza os
dedos e olha para Osvaldo. Osvaldo o encara: – Não está certo.
–
Está certo sim... qual a cláusula que o
senhor tem dúvida? Me mostre...
–
Não está certo ela ficar no terreno. É a
terra, é o chão... o chão da minha mãe, o chão da família da minha mãe. Ali tem
a história de todo mundo. Ali que eu brinquei. Ali que eu aprendi quase tudo.
Minha mãe não tem mais idade...
Paulo
olha para o celular e volta a olhar para Osvaldo. Olha novamente para o celular
e dá outra risada contida. Tenta se recompor ajeitando-se na cadeira: – Olha, “seu” Osvaldo, as coisas são assim. A
casa está no terreno... eu entendi...
–
Não, o senhor não entendeu,
–
Claro que entendi. Está escrito aí...
–
Aqui não tem nada escrito.
–
Como não. Claro que está. Está escrito sim,
quer ver?
Paulo
tenta pegar o papel das mãos de Osvaldo. Osvaldo puxa o papel com força e se
levanta, debruçando sobre a mesa de forma ameaçadora: – O que eu quero saber não está escrito. O que eu quero entender não tem
ninguém para escrever. Ainda não inventaram um tipo de papel onde essas coisas
são escritas. Não existe em nenhum dicionário as palavras pra dizer isso que eu
quero entender. Essas coisas não existem. Ainda não foram inventadas. Esse seu
mundo... O senhor não sabe. O senhor não conhece. É que o senhor não estava lá
ontem, comigo. Ontem ela foi pra casa. Quer saber o que aconteceu? Quer saber?
Ela foi para a casa... passou pelo corredor do lado da casa da minha mãe. Ela
não sabia que eu estava lá. Ou ela fingiu que não sabia. Ontem ela entrou em
casa... Passou no corredor. Passou com a menina. Passou dando risada,
conversando... Passou com a menina... e com um cara... um homem... um outro
homem...
–
“Seu” Osvaldo, ela tem direitos...
Direitos? Direitos? E eu? E a
minha filha? E a minha mãe? E os vizinhos? E os meus amigos?... essa gente que
me conhece desde pequeno...
–
Ela pode...
–
Ela pode, mas não deve. Não devia. Não
podia. Com a menina...
–
Não tem lei. Não tem Justiça. Não tem
direito. Não tem papel. Não tem vergonha. Não tem caráter... a menina... minha
mãe...
Paulo
olha novamente para o celular e dá outro sorriso contido. Osvaldo levanta-se
abruptamente e derruba a cadeira. avança de repente sobre a mesa e pega o
celular de Paulo: – Calma, “seu” Osvaldo.
O que é isso, “seu” Osvaldo. Dá aqui. Dá aqui.
Osvaldo
joga o celular no chão e pisoteia o aparelho com raiva.
–
O senhor não pode fazer isso. Eu tenho
testemunhas...
Paulo
ajoelha-se no chão e recolhe o celular em pedaços, quase chorando: - Isso não é justo... isso não vai acabar bem...
–
Não, não vai mesmo... não vai acabar
bem... nem para o senhor...
Osvaldo
ergue a minuta no ar e começa a rasgá-la: –...nem
para ela... nem para mim... Osvaldo encara todos no cartório e atira os
pedaços de papel sobre as pessoas: –...nem
para ninguém!
Conto
escrito para o encontro de 01/ 09/ 2015
Walter
Macedo Filho é dramaturgo, jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural.
Integrou o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por
Antunes Filho. Como gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca
Dicró, Biblioteca Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu
primeiro livro de contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras. Atualmente escreve o
roteiro para o novo filme do diretor Paulo Thiago após ter desenvolvido o
argumento.
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