Sobrado, ou a escada que lhe cabe - Cláudio PS



Sobrado, ou a escada que lhe cabe.


A casa velha em que ele mora tem uma escada de exatamente onze degraus da porta até o primeiro corredor. Do ponto de ônibus até em casa são vinte e dois passos. Da casa ao trabalho cinquenta minutos. De casa até o cemitério mede-se uma vida. Talvez menos. Como está ficando velho, se durar menos que uma vida, que é um valor relativo, não deve fazer mal. Quero dizer, diante da falta de sinais de felicidade, era como se estivesse semi-morto, automático e timorato. Taciturno e macambúzio. 

Afinal, a vida é um arroubo, um rompante, entre uma primeira inexistência e outra inexistência. A primeira não dói. A segunda, como é esperada e temida, talvez. Mas a dor não é nela em si.

A maioria das pessoas lá fora são estômago e genitália, ele diz. Churrasco e cerveja. Pagode e novela. Funk proibidão. Mulher de shortinho no comercial. Futebol e feijoada. Não completa, claro. Feijão e duas ou três peças de carne, no máximo. Linguiça sem trema. Uma dose de cachaça e um pedaço de laranja. Couve bem cortadinha, por favor. Farofa de ovo. Elementos que simbolizam alguma coisa, mas nada terrivelmente importante. Praticamente nenhum cérebro. E a redução à que o ser humano lá fora parece ter se encaixotado, em satisfazer os sentidos, antes lhe incomodava. Hoje o irrita. Estamos ficando velhos, assevera o amigo que diz ter a mesma percepção.

Por isso passou a sentir necessidade de sumir. Virar mendigo ou náufrago devorado por sardinhas famintas? Tubarão arranca a perna de uma vez. Ele viu num filme. Deve doer muito. Por isso preferiu morrer aos poucos e só. 

Pensou em separar a frase anterior em três assim: 

Por isso preferiu. 

Morrer aos poucos. 

Só.


Não se deve ferir a flor do Lácio. Você sabe. Foi de propósito. Para que Ele e Você pensem mais um pouco. Ele pode até tentar te persuadir, mas você sempre pensou e pensará por você mesmo ou mesma. Por que se nasce sozinho e morre-se sozinho. Por que mesmo que você morra numa guerra com dez mil outros soldados ao seu lado você vai sozinho pro outro lado.

Mas, ele pede para deixar bem claro: Antes de morrer de “verdade”, morrer para o mundo lá fora. Da humanidade de estômagos e genitálias sobre duas pernas.

Medo de morrer? Por quê? Não adianta! Eu, ele, você, o peixe de aquário, a árvore centenária, todos vamos morrer. Triste? Então choremos. Lágrimas de crocodilo. Carpe diem, maluco!

Apesar de tudo a Vida o diverte. Ainda. Só isso. Um drink, por favor. Um entorpecente, um sonho em Tecnicolor e a conta.

Vamos vivendo. Ele e você. E não desistimos. Acaba que, mesmo que a ausência de sinais promova o tédio, ele arruma sempre um jeitinho. Pelo menos, de se divertir.

Voltar para casa, subir os degraus, entrar no quarto, deitar e dormir. Acordar. Até um dia. Morrer, dormir, talvez sonhar. E tentar entender aqueles símbolos malucos do subconsciente. Sonhar sendo devorado por sardinhas famintas...


Conto escrito para o encontro de 29/ 09/ 2015




Cláudio PS acredita que sabe escrever desde que tirou 10 em redação na oitava série.

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