Odeio meus pés - Daniel Russell Ribas
Odeio meus pés
Não sou um pavão para ficar ligada em aparência. Só
a superficialidade me irrita. Se o cara é novo, velho, magro, gordo, estilo
lenhador ou careca (desde que não seja nenhum desses em excesso, tipo mórbido),
beleza! Ter bom papo e pegada são essenciais e tão tão em falta no mercado...
Ah, desculpa, é que me distraio com algum detalhe bobo e viajo do assunto:
comentava sobre minhas patas.
Sim, patas! (Não sou exagerada, pare!) Eu me acho
uma garota bem atraente, nenhuma modelo, quero perder uns quilos (Nilo acho
isso exagero meu, mas tem roupa que não entra em mim!). Sou bonita, meu povo!
Há, há, há. Tenho um bom corpo (e vai melhorar depois que eu pegar uma cor,
queimar a gordura localizada, crescer mais um palmo de cabelo...). Mas meus pés
são horríveis. Nunca usei sandália rasteira. Na praia, ando com eles DENTRO da
areia, correndo o risco de pisar em cacos de vidro ou bosta de cachorro
enterradas. Se eu tivesse nascido na Grécia Antiga, seria uma daquelas
criaturas mitológicas, parte mulher, parte pés de ornitorrinco ou outro bicho
estranho qualquer. Ai, por que você me fez contar dos meus pés? Tou bêbada,
liga não. Ah, é por causa do Nilo! (Sim, eu sei que Nilo, como Terêncio, é nome
de piada de advogado, mas deixa eu falar!)
Tava estudando pro concurso na Casa Daros (Ah, por
que você vai fechar, amada?). É perto, tem biblioteca, e, depois, eventos
maneiros e boca livre, uma delícia! Entra este cidadão, cheio de livros,
tropeçando nas cadeiras e derrubando estojo, livro, tudo, dos braços dele. Eu
me abaixo para pegar uma apostila do chão bem a tempo de um caderno do “Avatar”
(o filme do Super Size Smurfs, não o anime) cair na minha cabeça. Aí, ele
percebeu a merda que fez com sua impressionante falta de jeito (Acha isso ruim?
Precisa ver ele dançando forró. Tadinho, o bicho tenta...) e tudo caiu de vez e
eu corri para não ser atingida e virar espécie em extinção. Desci para tomar um
café, sentei e, de repente, surge o desajeitado com duas xícaras de café. A
primeira impressão foi que ele ia derramar o café quente em mim para terminar o
serviço.
- Não se preocupe, não vou derramar o café em você.
É só um pedido de desculpas. Não é execução com café máfia style ou algo da
“Família Soprano”. – disse.
Ri e achei interessante ele ter dito o que eu tinha
acabado de pensar. Deixei que sentasse comigo.
- É também uma forma de agradecimento.
- Pelo quê?
- Por não prestar queixa à Polícia da Biblioteca.
Desde aquele episódio de “Seinfeld”, sobre o detetive da biblioteca, tenho medo
da Polícia da Biblioteca.
- Vou pensar no seu caso.
- E também por ter salvado meu caderno com sua
cabeça. Se fosse uma partida de futebol, teria sido um belíssimo gol de cabeça.
- Quase partiu minha cabeça aquele caderno. Devia
jogar esse café em você por vingança.
- Pode jogar, tá pago. Além do mais, soa justo.
Antes de atirar o café, prefere ele com açúcar ou adoçante?
- Açúcar.
- Ótimo, combina, eu também gosto. Pode jogar.
Ri alto e não joguei o café. Começamos a nos ver em
outros eventos da Casa, porque ele também gostava de cultura e boca livre. A
gente ficou próximo, conversava no Facebook direto. Finalmente, ele me chama
para ir ao cinema. Enfatizei que sairíamos como amigos e ele cantarolou a
música do “Simplesmente amigo”.
Me arrumei em mais tempo que o usual (e eu demoro
normalmente). Pro meu azar, decidi pôr este sapatinho bonitinho que ainda não
tinha testado. Nos primeiros dez minutos, não senti nada. Então, começou a
doer. Mas já tava na metade do caminho, toda arrumada, não ia desistir. Depois
do filme, (que foi um alívio pro meus pés, pois tava escuro e pude tirar o
sapato), fomos prum bar. Pus o sapato e mesmo sentada, voltou a doer. E mais
ainda. Nilo notou e perguntou o que houve. Respondi que meus pés doíam.
- Tira o sapato.
- DE JEITO NENHUM! – gritei com a fúria de um demônio
de RPG.
A ferocidade em meu discursou calou o bar, juro.
Após algumas trocas constrangedoras de olhares com gente que nunca vi antes,
ele perguntou qual era o problema. “Odeio meus pés, são feios”, respondi. Ele
fez uma pausa e contou: “Bom, eu não gosto de minhas mãos.” “Por quê?” “São
queimadas, não notou?” Foi aí que me dei conta do aspecto envelhecido, áspero,
avermelhado de suas mãos. Tinhas umas feridas cicatrizadas também. Nunca tinha
visto até aquele momento. Ele revelou: “Foi por isso que derrubei o material em
você quando nos conhecemos. Minhas mãos coçavam e queimavam e não consegui
controlar.” Em seguida, ele pegou pelos ombros e me beijou. Era um toque forte,
mas amável, decidido e caloroso e me deixei conduzir. Senti meus pés fora do
chão pela primeira vez em muito tempo. Quando abri, estava descalça e não me
importei.
- Olha, você é bem habilidoso com suas mãos, rapaz!
– falei, sorrindo.
Aliás, eu suo nas mãos, mas ainda não contei para
ele. Sobre o que você queria saber mesmo sobre o Nilo? Ah, este vestido! É
lindo, o Nilo que me deu e....
Conto escrito para o encontro de 13/ 10/ 2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura”
(http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal.
Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio”
(http://multiconto.blogspot.com.br/), em parceria com o poeta Henrique Santos.
Organizou as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A
polêmica vida do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com
Flávia Iriarte e publicados pela Oito e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”,
em parceria com Luiz Felipe Vasquez, pela Editora Draco. Participou como autor
dos livros “Clube da Leitura: modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1”
(publicação independente), “Clube da Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto
G” (Multifoco), “Caneta, Lente & Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura,
vol. III”, “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros
na Estação” (Oito e meio).
Comentários
Postar um comentário