O estranho - Walter Macedo Filho
O estranho
Tem gente
que diz que eu sou um cara simplório. Esse pessoal acha que, na minha cabeça,
só passam coisas do tipo “bom e mau”, “belo e feio”, “útil e inútil”, “rentável
e não-rentável”. Não é bem assim. Na minha cabeça não existe tanta confusão. As
coisas comigo são mais extremas. Estão divididas entre amigos e inimigos. Dou
um exemplo: esse homem que apareceu na redondeza, faz pouco tempo; ele abriu um
negócio aqui perto e eu não vejo problema. No fundo, o fato dele chegar por
aqui está sendo vantajoso para mim. Já fiz bons negócios com o sujeito. Mas é
meu inimigo.
Meu
inimigo não precisa ser moralmente mau ou esteticamente feio. Isso não. Seria
preconceito da minha parte. O que pega mesmo é o fato dele ser o “outro”, o
“desconhecido”. É por isso que eu acreditei que haveria conflito entre nós.
Comentei minha percepção com um vizinho. Ele disse que poderia me ajudar, pois
se considera uma pessoa “imparcial”. Tive
que explicar, com cuidado, que não dava para aceitar a tal ajuda. Esse tipo de assunto
só pode ser resolvido pelos próprios envolvidos.
A diferença entre amigo e inimigo deve ser entendida num sentido concreto.
Não dá para tratar coisa tão séria com metáforas, símbolos… coisas de poeta.
Tudo fica meio frouxo se levarmos para o lado espiritual ou econômico: de um
lado, ele seria um “adversário nas discussões” e, de outro, um “concorrente”.
Só isso. Eu diria que dá até para fingir que os inimigos não existem. Mas, isso
aqui não é ficção.
Posso odiar alguém por antipatia. Não significa que seja meu inimigo. É o
seguinte: inimigos são as pessoas que você combate, mesmo que seja um combate
eventual, esporádico. Um adversário privado, particular, não é seu inimigo.
Inimigo é somente o inimigo público. Espero sinceramente que tais diferenças
desapareçam um dia da Terra, uma vez que há problemas de ordem sagrada: a
Bíblia registra que o apóstolo Lucas teria dito “Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam”; e Mateus
tascou “Amai a vossos inimigos, bendizei
os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos
maltratam e vos perseguem”. Mas eu estou falando do “diferente”, do “estranho”,
gente que deve ser combatida a qualquer custo.
Não trato do combate puramente intelectual. Não é a “luta simbólica” pois,
de algum modo, toda vida humana é uma “luta” e todo ser humano é um “lutador”.
Eu falo de guerra; meu combate é guerra. E guerra decorre da inimizade, da negação
desse “outro ser”, desse “diferente”. A guerra entre eu e ele vai ser a realização
extrema dessa inimizade. Meu combate tem a ver com arma, e o essencial
no conceito de arma é que se trata de um meio para a morte física de pessoas.
Não preciso achar nossa guerra algo “normal”, “ideal”
ou “desejável”. Mas nossa
guerra tem que existir como possibilidade real. Ao longo da vida, descobri que as pessoas não têm que ser
eternamente minhas amigas ou inimigas. Mas, imagine um mundo no qual não
existisse a possibilidade de combate ao “outro”, ao “estranho”, ao “diferente”;
um planeta definitivamente pacificado, como defendia aquele músico que, aliás,
foi assassinado. Seria um mundo sem a distinção entre amigo e inimigo. Imagine se esse músico pacifista tivesse
conseguido convencer tanta gente, e que sua posição se tornasse tão forte a
ponto de levar os pacifistas a uma guerra contra os não-pacifistas, a uma
“guerra contra a guerra”. Imagine! Os pacifistas teriam uma vontade tão forte
de evitar a guerra a ponto de não mais temer a própria guerra. Mas o músico foi
morto. Fazer o quê?
Estou
aqui, de arma na mão, prestes a resolver a questão. Deixei o “diferente” ali no
quarto, desacordado. Não dá para confiar em quem confia demais em você. Ele
confiou demais em mim. Deve haver alguma coisa errada. Vivia concordando
comigo, aceitando tudo o que eu dizia, o que eu falava, o que eu pensava. Dá
para desconfiar. Nos dias de hoje, temos que tomar muito cuidado. Aprendi essas
coisas em casa, com a minha mãe, que sempre me dizia: não converse com
estranhos.
Walter
Macedo Filho é dramaturgo, jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural.
Integrou o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por
Antunes Filho. Como gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca
Dicró, Biblioteca Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu
primeiro livro de contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras. Atualmente escreve o
roteiro para o novo filme do diretor Paulo Thiago após ter desenvolvido o
argumento.
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