Uma Confraria de Tolos - John Kennedy Toole



Recomendação de leitura por Márcio Couto
Apesar da erudição prematura e uma carreira acadêmica despontada já nos idos da adolescência, John Kennedy Toole não viu sua magnus opus ser lançada. Foi um homem solitário, rejeitado tanto literariamente quanto socialmente, e que cresceu sob o cabresto da mãe – mesmo esta sendo sua maior incentivadora intelectual.
Escreveu apenas dois livros, o primeiro com 16 anos e se chamava ‘Neon Bible’, ele o enviou inúmeras vezes a alguns dos mais importantes editores dos EUA, no entanto fora sumariamente ignorado, a história se repetiu quanto ao segundo. Aos 31 anos, Toole cometeu suicídio por asfixia, utilizando-se de uma mangueira de jardim conectada ao escapamento de seu carro e atravessada à janela do motorista, ele sofria de depressão e paranoia.
Após travar uma batalha de dois anos contra a depressão, Thelma Toole, sua mãe, que encarava os manuscritos originais do filho sobre a estante da sala diariamente, decidiu provar o talento de Kennedy continuando sua epopeia de publicação. Thelma o reenviou a sete editores e todos a rejeitaram; ela sofreu muito, alegando inclusive que ‘a cada porta que se fechava morria um pouco por dentro’, mas insistiu bravamente – muito para manter acesa a memória do filho.
Foi quando soube que Walker Percy – autor de um aclamado livro nos EUA chamado ‘The Moviegoer’ – tornara-se membro da faculdade de Loyola, em New Orleans (onde a família Toole morava), e então iniciou uma campanha de telefonemas e cartas persistentes, para não dizer inconvenientes (ele inclusive havia mencionado à esposa sobre as ligações de uma senhorinha chata que não o deixava em paz), insistindo para que Walker lesse o livro de Kennedy. Após meses de telefonemas semi-psicóticos, o pobre homem foi surpreendido pela Sra. Toole em seu escritório, e dando-se por vencido prometeu ler o material.
Em relato à imprensa, ele descreveu a impressão das primeiras páginas de ‘Uma Confraria de Tolos’ como algo que ‘não é tão ruim a ponto de ser ignorável’, já no meio do livro mudou para ‘até que despertou meu interesse’, passando por ‘eu não consigo parar de ler’, e concluindo incrédulo em ‘não é possível que seja assim tão bom’; para ter certeza Walker, exultante com o material que tinha em mãos, decidiu reler algumas vezes, e passou a acreditar que era sim bastante possível.
O livro foi publicado em 1980 e ganhou o Pulitzer.

Obviamente que a lenda por detrás de ‘Uma Confraria de Tolos’ é amplamente conhecida, o que não reduz a genialidade da obra em si, quem se sustenta perfeitamente sem que o leitor conheça sua provenánce. A história é ambientada na mesma Nova Orleans de Toole e conta o dia-a-dia de Ignatius Reilly, um glutão obeso cujo autor define logo de início como sendo um ‘Dom Quixote moderno: idealista, inventivo, excêntrico, e ingênuo’; essa ideia se mantém até o final do livro. Ignatius vive com sua mãe protetora e amorosa numa casa de subúrbio mas a destrata e a ignora compulsivamente, preferindo isolar-se no quarto e escrever calhamaços de reflexões filosóficas – muitas vezes inúteis – baseadas em ideais político-sociais um tanto próprios e que constantemente considera inovadores, Ignatius encara a si mesmo como o líder intelectual de uma revolução aguardando por eclodir.
Sua rotina vira do avesso após um acidente de carro desencadear uma série de eventos que o forçam a travar um embate contra a realidade; Ignatius se vê forçado pela mãe a ter de trabalhar, de início numa barraquinha de cachorros-quentes e depois num escritório, e aprende a encarar a medida e o valor dos próprios atos, tendo de lidar com o rudimentar sistema da justiça e com as engregagens enferrujadas da burocracia e das leis trabalhistas que só atrapalham os meios de manifestação popular. Tudo isso, naturalmente, da pior maneira possível, e sempre com Ignatius atrapalhando muito mais do que ajudando, sendo muitas vezes o pivô dos próprios problemas que tenta consertar, mas sem jamais considerar-se culpado, e sim vítima.
Uma das melhores passagens do livro é quando ele lidera a revolta dos funcionários da fábrica onde trabalha, sendo erguido com muita dificuldade – pois seu peso só faz aumentar – numa cadeira e guiando a turba até o escritório da administração, mas as coisas naturalmente não terminam como pretendia. O livro é realmente hilário, uma arma poderosa anti-tédio e que paradoxalmente parte dele para desenvolver uma narrativa impecável, com personagens facilmente dimensionáveis, e sem tirar o pé do deboche. Não dá pra acreditar que tantos editores o tenham rejeitado, prefiro pensar que eles sequer o leram, algo que por si só nem de longe é um ponto de vista mais positivo.
Pessoalmente sempre vi coincidências entre Ignatius Reilly e o jovem Holden Caulfield, de ‘O Apanhador do Campo de Centeio’: ambos são (muito) mal-humorados, idealistas, sonhadores, andarilhos solitários, reclamões, e até se vestem de maneira mais ou menos semelhante: cachecol, casaco grosso, e um chapéu de caçador, no entanto, o de Ignatius é amarrotado, velho e ridículo, ao passo que o de Holden é bonito e recém-comprado. Talvez Kennedy tinha isso em mente ao desenvolver um personagem que, em suma, é uma sátira de si mesmo, talvez ele tenha pensado em Salinger e se equiparado a Caulfield, ou talvez quisesse apenas tirar sarro de tudo, pois ao mesmo tempo que o livro é bonachão, em igual medida é ácido e desesperançoso.
A meu ver Toole tinha plena noção da magnitude de sua obra e apostou nela até a última gota de suor, até perder a vontade de seguir em frente; fico pensando quantas histórias como a dele se repetiram no universo literário... Mesmo com todo drama por detrás da publicação, a saga de Kennedy & Ignatius obteve um final feliz e trágico ao mesmo tempo: foi premiado sim, é um clássico moderno sem dúvida, mas em troca de uma vida, justamente a de seu próprio criador; quantos autores brilhantes simplesmente desistiram não pela fé que possuíam em si, mas pelo cinismo dos demais? Em outras palavras, quantos ‘Uma Confraria de Tolos’ não foram lançados por falta de visão? Para um mercado cujos representantes supostamente são considerados mais esclarecidos intelectualmente, o mundo da literatura muitas vezes soa como justo oposto: de fato, um mundo de tolos.

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