Síndrome de Wegman - Daniel Russell Ribas
Síndrome de Wegman
A verdadeira beleza só pode ser apreciada estática. Aberta
em um quadro. É comum estar ao lado do espetacular e desprezá-lo. O corpo é um
exemplo. Trata-se de uma invenção refinada, que interliga cálcio, líquido e
carne em uma série de transformações. Com exceção do interior em vermelho, o
resto é diferente. O design, a cor, a grossura e o gosto tornam cada ação
combinada um complexo diferente. O corpo é um mutante frequente. Mantenho esta
impressão desde que conheci Helmut Wegman.
Ele foi meu professor. Prestigiado, fez fama e
dinheiro fotografando modelos nus em poses inusitadas para propaganda. Um
anúncio conhecido dele mostrava uma mulher magra e de membros longos e finos
posando entrelaçada a uma árvore. O corpo dela contorcido ao máximo, de modo a
imitar as formas da natureza: braços como galhos ramificados, pernas dobradas e
espalhadas tal as raízes. Na mão esquerda suspensa, segura na ponta por dedos
que apontavam para baixo, uma lata de cerveja. Uma vulgarização lucrativa, como
definiu. Tanto que pode se aposentar e se dedicar a projetos pessoais. Passou a
tirar fotos de corpos em estados variados de decomposição, numa coleção que
denominou “Os olhos de quem vê”. Esta fase foi considerada pela crítica
“fascinante” e “perturbadora”. Depois, se aposentou.
Quando soube que daria um curso sobre como
fotografar nus, me cadastrei. Devido a seu trabalho elaborado de iluminação e
enquadramento, acreditei que o foco estaria para o aspecto técnico (os
detratores de Wegman acusavam seu trabalho de “hermético” e “tão belo quanto
vazio de significado”). Para a surpresa da maioria e decepção de vários, foi o
oposto. Por aulas, Wegman conversou sobre a filosofia da fotografia e como a
luz poderia destacar outros mundos dentro do ordinário. “Dizem que a literatura
é capaz da verdadeira experiência de imersão. Entretanto, se lembrarmos de
Schönberg em “Harmonia”, a arte em estado puro não mais é do que a reinvenção
de um estímulo externo interpretado pela percepção individual, levando a novos
movimentos, complexos diferentes. Logo, não reproduzimos ou sequer adaptamos o
mundo. Nós o transformamos. A letra grava a impressão. A lente destrói”. Era a quarta
aula e metade da classe já tinha se mandado.
Pela décima aula, só eu e uma moça tínhamos
permanecido da turma inicial de 30. Não tínhamos tirado sequer uma selfie com os celulares. Não
conversávamos, pois Wegman censurava toda e qualquer comunicação durante os
sermões. Por algum motivo, mantivemos distância também fora da sala. Aquela
noite, no entanto, foi diferente. Wegman chegou acompanhado por uma modelo em
um robe. Embora a perspectiva de poder exercitar fotografia fosse estimulante,
senti uma ponta de pesar. As palavras de Wegman batiam fundo em mim. Por dez
semanas, minha mente pareceu expandir e passei a encarar o ambiente de outra
forma. Tudo era um objeto esperando para se tornar outro. Um sorvete, uma poça
gosmenta. Uma criança, um doente terminal. A noção da finitude em seu estado
embrionário me dava um gozo espiritual.
A modelo era, como preferência de Wegman, alta,
magra e de traços andróginos. Ela tirou o robe. “O que vocês veem?” Ainda
contaminados por um olhar viciado, descrevemos mecanicamente o que se
apresentava: jovem, quase anoréxica, rosto marcado pelos ossos protuberantes, braços
e dedos longos e finos, assim como as pernas e pés. Ela também tivera um de
seus seios extraídos, cicatrizes pelas pernas e quadril e pupilas completamente
brancas. “Não!” – gritou com fervor – “Ela é uma araucária!” Neste momento, eu
e a colega não conseguimos evitar o espanto e nos olhamos pela primeira vez.
“Prestem atenção!” Wegman nos relatou que a moça era de uma de suas modelos.
Após uma festa, sofreu acidente de carro e ficou presa nas ferragens. Perdeu um
dos seios a visão e teve o útero perfurado, além de diversas escoriações.
A moça, despida, desceu de seu pedestal e calma, mas
seguramente, caminhou até nós. Em meio a cadeiras espalhadas e outros objetos
no chão, veio sem tropeçar ou hesitar. Assim que parou, levantou os braços e
nos puxou para perto dela. Sentíamos a respiração dos três, o braço dela ainda
parcialmente esticado e fora de nossos corpos. “Vocês têm que ver por dentro.
Se virem com seus olhos, ficarão cegos! Sem enxergar, é que verão a beleza como
ela é, de dentro!”. A modelo me beijou e, em seguida, minha colega. Finalmente,
beijamos a três. Transamos e ficamos tão conectados que parecíamos raízes que
brotavam de dentro de um ser maior. Quando gozamos, eu e minha colega
descobrimos que esta dádiva maior era a morte. Que a beleza só pode ser
capturada por aquele que reconhece e respeita sua finitude. “A beleza é uma
doença terminal” e finalizou Wegman. Três dias depois, soubemos de seu suicídio
pelos jornais.
No seu funeral, encontrei minha colega e, pela
primeira vez, conversamos. Não nos apresentamos, pois achamos desnecessário. O
que queríamos era dar continuidade aos ensinamentos de Wegman, mas agora na
prática. Assim como nosso mestre fizera no começo de carreira, arrumamos
equipamentos e fomos experimentando, tanto a técnica das máquinas quanto a de
nossos corpos. Trepar para nós não era somente pelo prazer, era uma forma de
simbiose entre duas pessoas que privavam de um mesmo e profundo conhecimento.
Algo que pode ser insinuado, mas nunca desenvolvido para aqueles de fora, pois
barateariam a lição. O sagrado não poderia correr este risco.
Fizemos uma exposição que chamamos “Síndromes de
Wegman”. Era uma coleção P/ B comigo e minha parceira e outros modelos com
deformidades em poses sexuais ou transando em cemitérios, depósitos abandonados,
natureza e banheiros imundos, com algum elemento de automutilação. A única
crítica que tivemos definiu nosso trabalho como um “clip do Nine Inch Nails
para dummies”.
Abandonamos nossos empregos. O registro da morte em
seus detalhes hedonísticos era o mais importante. Em um de meus melhores
trabalhos, registrei a artéria do pescoço de minha parceira esporrando ao mesmo
tempo em que alcançamos o clímax. Ela morreu em meus braços, no ápice, e nunca
me senti mais vivo. A beleza era tamanha e a parte técnica, luz e
enquadramento, tão perfeitos, que precisei dividir com o mundo. Vendi o
original para um milionário, que me esconde da polícia. Agora, uma nova etapa
de meu trabalho começará. Eu e minha parceira faremos uma nova série, em que a
pele a carne serão um só em dois corpos. Um mutante de dois torsos, um fechado,
outro aberto. O interior pode ser igual, mas, juntos, teremos um complexo
diferente.
Conto escrito para o encontro de 12/05/2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura”
(http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal.
Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio”
(http://multiconto.blogspot.com.br/), em parceria com o poeta Henrique Santos.
Colabora como resenhista para o site “Boletim Leituras”. Mantém o blogue “Poema
Diário” (http://pordiaumpoema.blogspot.com.br/), em que publica poesias de
autores diferentes; atualmente em animação suspensa. Organizou as coletâneas
“Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É
assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados
pela Oito e meio. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de
usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da
Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente &
Pincel” (Ed. Flaneur), “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e
“Encontros na Estação” (Oito e meio).
Este conto me causou uma boa impressão na hora, melhorou ao ser lido. Abraço.
ResponderExcluirEu gostei muito deste conto, foi mote dos Morangos, não foi?
ResponderExcluirque bom que postaram, assim pude ler novamente.