Folguedos da Vila Boa de Goyaz - Francisco Ohana



Folguedos da Vila Boa de Goyaz

Canastra. Muito canastrona essa filha do tal escultor, o Veiga Vale.
Eu assistia a uma apresentação da paixão de Cristo, a imagem carcomida do nazareno, na Boa Morte, em Goiás. Deixei os outros na praça do coreto, tinha ainda confete de carnaval na calçada, como se ali o ano passasse mais devagar. Esta cidade é mesmo o passado. Puxei um fósforo. Bateu um vento na chama, mas deu pra acender meu baseado. Traguei sozinho, profundo, a fumaça da maconha. Senti que ela queimava as paredes da minha laringe, meus pulmões, insinuando-se sobre meu sangue feito uma infecção que incendeia com calma. Me cobriu de cinzas e calor. Como eu lembrava daquela porra, não me pergunte, mas um tal Bartolomeu Bueno, bandeirante, ameaçou entrar aqui e queimar os rios da cidade se os índios goyazes – que estavam quietos até aquele momento – não revelassem de onde vinha o ouro dos seus colares. Bandeirante filho da puta, o ouro acaba, o garimpo dá e tira. O ouro serve à guerra e à paz, mas o garimpo dá e tira, e o fogo daquela ameaça não poderia contra as águas do rio vermelho. As areias coloridas do seu leito, lembrança das cores do casario da eterna colônia voltada sobre si.
A paixão de cristo me entedia. Um tédio de pastoreio, de vaca de sesmaria imperial. De Dona Maria, a Louca. E essa fumaça quente que arde na garganta, no peito, tem um cheirinho defumado de senzala, de bolandeira velha. E daí, devo algo à alguém? À Dona Maria? À Coroa? À mamãe? Mas eu juro – juro de pés juntos – que sobre a casa da ponte do rio vermelho, vi a Hilda Hilst fumando também. Estava lá, com os cabelos de quem tem pena do que vê. Mas ela não vê nada de novo, e esse é exatamente o problema. A mesma velha esquadria que substituiu a casa colonial. A réplica do crucifixo. Muito moderninha, essa Goiás, cheia de olhos de vidro como os santos do Veiga Vale. O problema é que a beleza tem muito que ver com autenticidade. E não há nada de muito autêntico por aqui.
Fui comer um empadão goiano, aquele gosto amargo da guariroba, com uma porção de linguicinha picante à parte.

Cora Coralina, bicho. Não era a Hilda Hilst, era a Cora Coralina na janela.


Conto escrito para o encontro de 28/04/2015

 



Francisco Ohana é economista e participa de atividades que o mantenham ligado às artes, principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.

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