Autopoiese - Guilherme Preger
Autopoiese
Os construtivistas acham que somos sistemas autopoiéticos que construímos
a nossa própria realidade. Mas isso gera um enorme problema: há tantas
“realidades” quanto sistemas autopoiéticos e então como podemos nos entender? A
questão não é a de como podemos compartilhar visões de mundo essencialmente
distintas, mas algo ainda mais profundo: como compartilhar mundos, sistemas
construídos autopoieticamente diferentes, baseados em experiências radicalmente
singulares. Haveria no ambiente “lá fora”
algo que fosse independente dos mundos autopoieticamente criados ao qual
pudéssemos nos referir e orientar uma concordância? Mas esse algo pertenceria a
qual realidade se apenas seres autopoiéticos constroem realidades? E o problema
então retorna: como podemos comunicar o incomunicável, o que está “dentro” de
cada realidade?
Pensei nisso enquanto me dirigia ao encontro com minha ex-mulher. O
casamento havia sido desfeito porque vivíamos em “realidades” que se
diferenciavam cada vez mais até se tornarem opacas ao outro. O que se dirá
agora que estamos há cinco anos separados e não são apenas mundos diferentes os
que habitamos, mas até mesmo universos paralelos aqueles em que vivemos.
Haveria um “buraco de verme” para permitir alguma comunicação entre esses
universos, que seguem suas próprias leis?
Por uns tempos, acreditamos que nosso filho poderia ser um canal de
comunicação, mas nos enganamos enormemente. Pois nosso filho era ele mesmo um
ser autopoiético que construía sua própria realidade, completamente diferente
das nossas. E nosso filho acabou sofrendo com isso, adoeceu, repetiu de ano e
precisou de terapia. E agora enquanto me dirigia à sessão com a terapeuta dele,
onde iria me encontrar com sua mãe, tentava imaginar que novo canal de
comunicação poderia ser aberto entre nós dois.
A terapeuta nos sugeriu voltar ao e-mail. Já havíamos tentado esse
caminho antes, mas os resultados foram desastrosos. O problema dos e-mails é
que eles dão chance a uma amplificação dos desentendimentos e não a seu controle.
Se uma ofensa aparece, uma ofensa se seguirá, assim por diante até um dos dois
simplesmente optar pelo silêncio. Já a comunicação pessoal havia desde muito se
tornado impossível, pois cada encontro era um ajuste de contas e cada conversa
era preenchida por ruídos crescentes até se tornar incompreensível o conteúdo
do que se queria transmitir. Mas isso era apenas o resultado de que a realidade
de cada um havia se tornado uma mera fonte de ruídos para o outro.
A terapeuta argumentou que a vantagem do e-mail era de que a mensagem
poderia ser reescrita se ela não estivesse “de acordo”. Assim, cada mensagem
enviada teria em anexo, subentendida, a seguinte pergunta: “esta mensagem está
de acordo?”. Caso não estivesse, o retorno deveria vir assim escrito: “sua
mensagem anterior não está conforme. Você poderia, por gentileza,
reescrevê-la?”.
Embora para mim retornar à era dos e-mails fosse um enorme retrocesso em
nossa relação e eu, em nome da sanidade de nosso filho, queria avançar e estava
disposto a qualquer solução, acabei por achar boa a ideia da terapeuta. Assim,
mensagens-comando do tipo “Compre o remédio para nosso filho” poderia ser
“refraseada” como: “Nosso filho está precisando de um remédio tal, estou sem
dinheiro, você poderia me ajudar a comprá-lo?”.
Os mais céticos dirão que tudo não passa na verdade de criar eufemismos,
de dizer o mesmo usando outras palavras, de suavizar a expressão. Mas fiquei
pensando que há realmente uma grande diferença entre escrever uma ordem ou
escrever um pedido de gentileza. Entre fazer uma pergunta ou passar uma
instrução. Aqui a escolha importa decididamente. Pois, no exemplo, o conteúdo, o fato de que
nosso filho precisa do remédio, é algo que nós podemos concordar, que não está
realmente em questão. O que está “realmente” em questão é a “forma” da
mensagem.
Saí do consultório mais aliviado achando que a conversa conjunta com a
terapeuta tinha sido produtiva. Trocamos uma despedida gentil e seguimos
caminhos opostos na rua, cada um na direção de sua própria realidade. Como era
estranha aquela situação para quem havia passado mais de uma década convivendo
junto.
Já no ônibus, voltei a pensar nos sistemas autopoiéticos. Sem querer, a terapeuta me havia ajudado a
esclarecer a questão que me atormentava. Pois o problema dos sistemas que se
diferenciam semanticamente, dos universos paralelos de sentido, não era de que
cada mundo formado por um sistema fosse incomunicável para outro sistema. Que
afinal cada realidade fosse incognoscível e assim nenhuma descrição seria capaz
de representá-lo a outro sistema cognitivo. Percebi, num lampejo súbito, que a
função de cada descrição não era a de representar a realidade interna de um
sistema a outro. Uma palavra, uma frase, uma sentença não eram a representação
de qualquer realidade. Cada palavra era uma seta de orientação, cada frase era
um corrimão onde se segurar e se equilibrar. Cada sentença era uma via, um
caminho. Cada texto era um pedido de “venha comigo”.
E chegando em casa me lembrei que, afinal, a lição maior dos
construtivistas era de que nenhuma realidade está feita e pronta para ser
comunicada. Cada realidade está sempre por se fazer, sendo “construída”
continuamente e que autopoiese não era o mesmo que egoísmo, idiossincrasia,
solipsismo ou solidão. Autopoiese era
justamente nossa capacidade de construir realidades novas. E de que cada
palavra gerada nesse sistema não era a descrição de sua realidade, mas era uma
ponte lançada a outro sistema e a outra realidade. Não para que as realidades
se comuniquem, mas para que atravessem juntamente a ponte. E enfim o desejo não
deve ser de compartilhar as mesmas realidades, de fazer de dois mundos um único
mundo, mas o de ajustar realidades para
que caminhem juntas ou, ao menos,
paralelamente.
E assim concluí que refrasear uma sentença não é só uma questão de
torná-la mais agradável ou bonita, mas de encontrar o melhor ajuste, a melhor
via para se percorrer. E que há uma diferença entre bem dizer e mal dizer. É
como uma bifurcação, uma encruzilhada, a diferença entre um bom caminho que
leva a muitos lugares ou um mau caminho que só leva a becos sem saída, a lugar
algum.
E fui dormir pensando no primeiro e-mail que iria escrever na manhã
seguinte. Pois afinal, tantas as pontes fossem queimadas ou derrubadas, tantas
ainda estavam por ser construídas.
Conto escrito para o encontro de 12/05/2015
Guilherme Preger é escritor e engenheiro, autor de "Capoeiragem" (7Letras) e "Extrema Lírica" (Oitoemeio)
e está no Clube da Leitura desde sua fundação.
Guilherme, leio Autopoiese num dia em q estou especialmente emotiva. Calculo q produzi uns 20 ml de lágrimas. Gosto do fluxo filosófico e gosto de pensar que construímos nossa própria realidade. Gosto do percurso da racionalização e da beleza dos teus sentimentos. Se não fosse prosa, seria autopoesia.
ResponderExcluirBeijos!
Deborah Geller