Mote do encontro (09/06/15)
Texto lido por Igor Dias
Dinamarca
Couvert
A esquina da Rio Branco com Ouvidor é algo que saiu
da rotina de Renata.
Renata tem 23 anos, faz faculdade de arquitetura e
mora em uma simpática casa de vila no carioquíssimo bairro das Laranjeiras. Saiu
de um estágio no Centro e foi trabalhar na Barra da Tijuca. É morena, tem 1,73,
66 quilos. Perde-se em elucubrações estéticas sobre as formas arquitetônicas da
cidade; prefere o art-decò ao art-nouveau, o Calatrava ao Niemeyer.
Diferentemente de outras quase-arquitetas da cidade, Renata não se engana: sabe
que vai trabalhar em uma construtora, muito provavelmente com projetos de
habitação para a classe média baixa, dois-quartos com dependências, varanda, cozinha
americana, portaria 24 h, vista indevassável para a Linha Amarela.
Renata se descobriu celíaca aos vinte e dois. Não
pode comer glúten. Sob nenhuma hipótese. Teve de deixar para trás todos os
tipos de pães, biscoitos e massas. Pizza, só se for de tapioca. Aveia, de jeito
nenhum. A boa e velha cervejinha, só em pensamento.
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A esquina da Rio Branco com Ouvidor é algo que saiu
da rotina de Manoel.
Manoel tem 55 anos, é divorciado e tem dois filhos. Conheceu
uma mulher, de nome que não diremos, com a qual começou a se relacionar há dois
meses.
Mora em um condomínio fechado no bairro de São Conrado,
mas está contando os dias para se mudar. Não comprou apartamento quando pôde, e
gasta muito dinheiro com aluguel. Sustenta um padrão de vida alto, sem grandes
apertos, mas também sem folgas.
Trabalhou por muito tempo em um grande escritório de
advocacia no Centro, especializado em ações contra construtoras e empreiteiras.
Usou o dinheiro da herança de mamãe para abrir seu próprio escritório, no
bairro da Gávea. Deve se mudar para a Barra da Tijuca no mês que vem.
Manoel se descobriu celíaco há quarenta anos.
Eventualmente, toma uma cerveja com amigos: faz parte de um grupo de teste para
um remédio novo que reduz os efeitos da ingestão do glúten.
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Em uma terça-feira insuspeita, Renata não foi
trabalhar: era seu aniversário. Decidiu ir passear pelo Centro, sozinha.
Almoçaria também sozinha, precisava pensar na vida; havia recusado, por
telefone, o baião de dois que sua mãe lhe prometera.
Nesta mesma terça-feira, Manoel precisou ir ao
Centro para assinar os últimos papéis pendentes que diziam respeito à sua
demissão. Almoçaria sozinho, precisava pensar na vida; havia recusado, por
telefone, o pernil de cordeiro que seu antigo chefe lhe prometera.
Entraram em um restaurante caro, sentaram em mesas
contíguas. Não se olharam. Pela tela do celular, ela lia e respondia os recados
de aniversário no Facebook, ele conversava por whatsapp com o filho.
O garçom achou esquisito quando cada um deles
recusou, de forma cortês, o couvert que lhes era oferecido: uma farta cesta de
pães. Quando voltava com as duas cestas intactas para a cozinha, pensou que, de
alguma forma, o gerente deveria deixar mais claro para a clientela que o
couvert não era cobrado à parte: era antes uma cortesia, um mimo da casa.
DIAS, Igor. Dinamarca. Rio de Janeiro: Editora Oito e meio, 2015.
Igor Dias nasceu no outono de 1987, na cidade do Rio
de Janeiro. Participa dos coletivos literários "Clube da Leitura" e
"Caneta, Lente & Pincel". É autor dos livros "Além
dos Sonetos Breves" (poesia) e "Dinamarca" (contos) ambos lançados pela Editora Oito e Meio em 2012 e 2015, respectivamente.
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