Meditação Sobre a Obscenidade Segundo o Voodoo - Márcio Couto



Meditação Sobre a Obscenidade Segundo o Voodoo


Era carbono outra vez. Era caveira. Era coisa viva que faz da coisa morta uma coisa sem nome, parcialmente idiota, uma coisa que anda. E a tripa dessa coisa é o tal do amor. Que bendita coisa, não? Não. Não há nada de especial nela. Tens o direito de fazer da tua tripa o teu rumo de vida, mas adianto que há estradas mais generosas... Sério que prefere o incerto mesmo assim? Você que sabe. Se sobreviver ao delírio, à obsessão que conduz ao útero do dragão, meio que vale a pena.

Quero ser atraente – disse Eulália – não me considero feia mas é que desejo demais a paixão das pessoas – e acendeu uma vela ao finado esposo: estava livre: ele dela, ela dele. Almejava saciar o apetite de si mesma: a primeira providência a se tomar ao aposentarmos a aliança é acomodar o coração numa gaveta.
Apelou às coisas do espírito. Sondou as mais diversas modalidades de culto; sabia que por detrás das íris cristalinas de Deus reside a desventura dos santos, logo optou por uma saída menos perfeitinha, mais intelectual, excêntrica, até no-wave: com as economias viajou ao litoral caribenho em busca de magia. É hora de mergulhar sem fim – ela disse – e descer fundo pra roçar o nariz na areia, e sei que sangra um pouco porque é áspero, e já fui informada que arde por causa do sal, e me disseram que o próprio sal faz cicatrizar sozinho, e avisaram que dói mas a gente tem de se acostumar, e que os peixes alimentem os tubarões porque minha carne é dura e quebra queixo feito coice de mula, e se eles vierem me comer é só me fingir de rêmora, e não sabia mas a vida é diferente quando vizinha do oceano, e tudo bem porque se parar pra pensar ser mundo é ser aquário.
Ser mundo é ser aquário – eis seu mantra.
Seus passos logo desapareceram nas profundezas de becos fedendo à palha queimada e banana, se esgueirou entre gente com cara de tronco velho, com dente branco, papoula na orelha; a ilha tão quente que fazia dia até de noite: o sol tinha disfarce de lua; as gaivotas se abarrotavam de siri e baratas. E foi ter com um homem de pele tão negra quanto todo mundo, e a barba era curva e o olhar reto, e coisa boa não era, e meio que ainda bem porque preferia gente cretina à gente honesta: Eulália desconfiava de todo mundo com cara de santo. Quando se perde alguém o que menos se necessita é de bondade.
O sujeito tinha a sombra feito um poço, guardava na capa pra mais de seiscentos gritos de gente viva e gente morta. Era sacerdote-feiticeiro do bem & do mal, do tipo que comanda cadáver só com o dom da palavra e uma boa folha de datura: Quero ser atraente – disse Eulália. Em meio à fumaça de charuto ele respondeu: Sou houngan e também bokôr. Cê é filha de Maman Brigitte, que sei bem. É só voltar na lua alta que cê vai ver defunto dançar. E te prepara que Serpente Arco-Íris vai desentupir teu sexo.

Ouvia-se os gemidos da cerimônia do outro lado da ilha. Não confio muito nessas coisas de demônio mas ele falou comigo e saiu tudo bem, ou mais ou menos. Um feiticeiro arrebentou os portões do templo e veio até mim com chapéu branco e cara pintada de caveira: afirmou ser neutro mas eu sabia que detrás da risada se escondia um chifre de fogo. Tinha vela pra tudo quanto é lado; as mulheres rasgavam os vestidos e varriam o chão com as costas, a maioria gorda e fedorenta e mendiga, gritavam como quem luta pra não fugir dos próprios ossos, só que era batalha perdida. Um porco preto teve as patas arrancadas, urrando de dor ele entrou em transe, jamais esquecerei seus ganidos de sofrimento e clímax; os ritualistas fincaram a marca do Barão Samedi no couro do animal: guardião das desgraças, artífice das maldições. Uma estocada de facão e a cabeça do porco desabou na terra, abriram-lhe o estômago e reviraram tudo que era víscera, uma sacerdotisa entrelaçou as tripas nos dedos e os ofereceu a mim: me disse “come” e eu comi, era salgado e quente, musculoso, pulsava no céu da minha boca. Eu sorvi sua vida, estava em mim; senti o espírito do animal lutando pra escapar de meus órgãos mas não permiti: ele era meu.
Quatro cadáveres floresceram da terra com a ajuda de neófitos, suas línguas há pouco inanimadas lamberam-me o pescoço e axilas, seus dedos imundos arrancaram minhas roupas e esconderam minha nudez com o couro esfolado do sacrifício, por fim uma chuva de cera derretida cobriu-me a espinha; sentia-me humilhada e profundamente livre. Estava cega, os olhos ardiam, foi quando em meio a borrões reconheci um dos cadáveres ferindo o próprio antebraço com uma espada: antes que pudesse reagir ele esfregou a lâmina em meus lábios e bebi seu sangue, era um vinagre gelado. Lembro de nada desde então, tudo mergulhou em trevas.
Ah meu coração que atravessou eras vazias para alcançar a apoteose da mediocridade. Meu coração que germinado nos lagos da desordem sucumbiu à esterilidade do inalterável. Eu o ofereço hoje os diamantes da liberdade. Eu o concedo o dom da metamorfose. Veja: estas são minhas entranhas; as mesmas antes cerradas pelas ditas virtudes. Pois hoje só almejo destas virtudes o orgasmo da desgraça. E que assim eu não mais caiba em mim. Mil lábios sugarão da minha língua a saliva crua, por décadas proibida, e me guiarão ao ventre da caçada. Que as vértebras de meus amantes sejam esmagadas pela minha paixão. Não encontrarão em mim outra vontade senão a sede pela desolação. Nada habitará o meu jardim ou tocará as pétalas de meu amor e desencanto. Os espíritos ancestrais me envolverão com sua loucura e me tornarei minha própria anarquia.
Quem? Quem está aí? Ah é você, meu anjo sagrado. Não, não tenho mais nada a ver com seu Senhor, sinto muito. Agora só tenho em mim abandono. Você sabia o tempo todo que tudo que é sagrado é artificial, e mesmo assim escondeu de mim; você me traiu: melhor fugir enquanto dá. Ah! quantas dores e prazeres seu Senhor me privou... Por isso amo as famílias voduns do submundo, as cortes movidas a sacrifício: por desprezarem as dualidades, as privações, por tudo a elas ter igual medida. Vá embora ou provará um punhado de minha violência, te rasgarei as asas, e arrancarei a virgindade de teu Senhor.
Sei que essa minha matéria apodrecerá um dia, e então caminharei por uma estrada de solidão e tenebrosidade, pois quando ocorrer quero toda esperança bem longe. É só o que peço: um pouco de indecência e muito de tempestade.
Ouço me chamarem, devo ir; lembre-se de mim quando frente a alguma devastação. Será que poderia dar um recado ao meu finado esposo? Diga a ele que

Conto escrito para o encontro de 12/05/2015





Márcio Couto faz livro, arrisca poesia, e vez ou outra é pintor. No Rio nasceu e se desfolhou feito planta, só que diferente.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz