O verme do meu analista - Vivian Pizzinga

O verme do meu analista



Estive, dia desses, lendo o Kundera, insustentável e leve, e pensei sobre a merda e deus, deus e suas vísceras mais recônditas, a merda borbulhando no grosso e no delgado, o ânus como porta de saída de tudo o que um dia entrou, o homem à imagem e semelhança sabe-se lá de que devorador de comidas cósmicas.
Estive pensando a seguir - associei de modo livre e esvoaçante - no meu analista, o Otto, muito impecável em suas cores em tom pastel, sua poltrona atrás de mim, seus leves movimentos, certos menear e piscar e andar, interpretações certeiras e perguntas perturbadoras, e lembrei de uma sessão em que ele disse que tomou vermífugo, nem sei a deixa, nem sei motivos, não sou capaz de adivinhar a finalidade de seu dito, mas que disse, disse! Tão contraditória aquela revelação com toda a discrição e todo o bojo de psicanalista dos bem formados, bem lidos, bem freudianos cultos, que cheguei a engasgar e, hoje, às vezes, só às vezes, duvido de que ele tenha feito uma tal confissão. Acabei lembrando também - associando de modo solto e desapegado - do dia em que ele disse que gostava de leite. Tão contraditório o Otto.
Esses pensamentos parecem ter sido o gatilho. Juntei, em questão de instantes atemporais, deus, kundera, merda, intestino grosso, intestino delgado (senti asco pensando no delgado, mas a imagem do grosso foi a mim indiferente), e mais o Otto, o vermífugo, o leite, juntei tanta coisa que me veio até um arroto. Por sorte, consegui interromper o arroto antes de ele virar som, e mais sorte ainda, o arroto abortado se deu em casa. Se fosse na análise, daria pano pra manga.
Mas os pensamentos não cessavam, e imaginei o intestino do Otto e se ele tem intestino. Acho mais fácil imaginar que deus o tenha (não ao Otto, mas aos intestinos, grossos, delgados, de qualquer espessura), do que meu analista. Ele que me acompanha há exatos 17 anos, que me viu fazer a cirurgia da vesícula, que me viu tirar o siso e ter alergia a amoxicilina, que me viu defender o mestrado em educação, que me ouviu falar sobre Paulo Freire, que me viu tentar o Doutorado e não conseguir e chorar uma semana, que acompanhou meu divórcio da Kátia, que me viu casar de novo com a Andréa, que me viu ser traído pela Andréa e procurar a Kátia de joelhos, que me viu pensar em adotar um filho e desistir na primeira visita ao orfanato, que me escutou em sonhos e pesadelos sobre os assuntos mais diversos (nunca sobre deus, sua merda e seus outros distintivos humanos ou biológicos). Ele que me acompanha há 17 anos, que não atrasa, que raramente desmarcou uma consulta (teve aquela em que achei que havia um choro embargando sua voz, pus-me a imaginar mortes, doenças, filhos depravados sendo buscados na boca de fumo na mais calada das noites) e teve aquela outra, em que alegou um motivo de saúde e suspendeu o atendimento por uma semana, mas, em 17 anos, vá lá, isso não é nada. Não consigo pensar que Otto, que me ouve há 17 anos, que me ensinou um pouco quem eu era, quem eu sou, quem eu achava que era, quem eu queria ser, quem eu não queria ser, quem eu jamais deveria ser, quem eu achava que jamais deveria ser, quem ele achava que eu deveria ser, e por aí vai, não consigo pensar que Otto come, digere e caga. Que talvez tenha tomado vermífugo. Que aprecia leite (não tive coragem de aprofundar a questão e saber se era integral ou desnatado, de cabra ou de vaca).
Não dá. Não o Otto. O Otto não sabe o que é um vaso sanitário. Jamais. O Otto nunca entrou em contato com um papel higiênico. Nunca teve remela.
Se tosse, é sem catarro,
se fica doente, é sem coriza,
se tem febre, não passa de 37,5,
se não escova os dentes, nunca tem mau-hálito,
se come comida podre, nunca tem gases,
se espirra, é sempre sem som,
jamais vomitou e não sabe o que é isso.
O Otto não. Mas deus, esse sim. Tem intestinos. Come nojeiras. Permitiu a criação da FIFA e que houvesse uma Copa no Rio de Janeiro, em 2014. Rejubila-se, sádico, quando a cidade, por causa de mega eventos, vira um caos. Deus é desses, sádico, irônico, vingativo. Se existe. E se tem intestinos. Se os tem, caga na cabeça de todos, solenemente. E o faz rolando de rir. Tosse, cospe, vomita, escarra, arrota e soluça.
Quanto ao meu analista, que não sei por que tomou vermífugos (desconfio agora que seja alguma fantasia minha, devo me certificar na próxima terça, às 18h30), quanto ao Otto, não caga e não arrota. Não tem cu e não tem medo.


Conto escrito para o Clube da Leitura de 27 de maio de 2014.




Vivian Pizzinga é autora de Dias Roucos e Vontades Absurdas, pela Editora Oito e Meio. É também psicóloga. Tem um gato chamado Vuvu. No outono e no inverno, toma chá para esquentar as mãos.

Comentários

  1. Muito bom. Parabéns, Vivian!!!

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  2. Justamente Otto, claramente para mim uma referência a um dos analistas mais loucos da história da psicanálise: Otto Gross, o médico desviado, o drogado. O texto tem o mesmo tom anárquico e sádico das visões psico-sociais deste pensador considerado maldito pelo establishment, mas venerado por pensadores e artistas da contra-cultura. Seus textos são sempre maravilhosos, Vivian Pizzinga, parabéns!

    Mauricio de Assis

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