A voz - Jeanine Salvaterra

A voz


1-Abertura

Entrou no palácio Quitandinha como quem percorre um  labirinto. Buscava ouvir a voz  naquele lugar.Passado e presente  se confundem. Ali, sua  mãe havia experimentado o glamour de uma época. Era cantora lírica, e apresentou-se nos palcos de cassinos no final dos anos 30 e início da década de 1940.
“Ela cantou aqui”, pensou, e um arrepio percorreu-lhe a alma, “em meio ao tilintar de moedas, misturando-se ao eco dos gritos dos jogadores suicidas.” 

2-Allegro non molto

No imenso salão azul de jogos, de 30 metros de altura, onde não havia dia nem noite, apostadores ganhavam e perdiam fortunas, fazendas, desgraçavam famílias, suicidavam-se.Ao lado, o teatro onde se realizavam os shows. Mais adiante, a boate, com suas mesas e cadeiras almofadadas em torno do segundo palco do antigo Hotel Quitandinha, que hospedou celebridades e  foi cenário de ostentação e do poder destruidor do dinheiro.
Ainda no térreo do palácio que, ao ser inaugurado na década de 1940, era um hotel, o mais luxuoso da capital do país, havia grandiosos  salões de estar.Um corredor dava acesso a  uma  galeria, onde exibiam-se fotos das celebridades que freqüentavam o hotel. Ao final da galeria, foi erguida uma imensa gaiola onde eram aprisionados animais nativos, como araras e  papagaios. À esquerda, uma piscina em forma de piano servia aos hóspedes que podiam locomover-se através de elevadores privativos.
Pensar que sua mãe convivera com toda aquela demonstração de opulência. Era uma artista, oriunda de família de latifundiários rio-grandenses-do-sul.Eles próprios haviam perdido o patrimônio nas mesas de jogo.A roda girava, e surgia uma artista no tempo em que as mulheres artistas eram confundidas com putas. Para ela, cantar era a necessidade maior de expressar-se, era a sua vocação.E o ambiente para exercer essa vocação foram no início as rádios e depois os cassinos: Urca, Atlântico, Icaraí, Quitandinha. A carreira meteórica durou apenas 10 anos.

3-Adagio

 Terminou como terminaram várias outras carreiras de contemporâneas: ao casar-se. A sorte estava lançada. O jogo acabara. De volta à condição de mulher, cumpria seu destino. Uma fatalidade. Aceita como tal. Não havia como escapar.
Mesmo assim, durante algum tempo foi possível continuar sonhando. Até que  a ilusão do casamento por  amor chegou ao fim. Mas, havia ainda a voz. À noite, ela cantava. Sua voz reverberava em meio à escuridão do sítio  onde morava. Perpassava mangueiras, jaqueiras, cajueiros, goiabeiras, jamelões, limoeiros , chegava aos ouvidos dos filhos, das sobrinhas e dos cães.Estes, em resposta, faziam coro, uivando.

Até que a voz foi se tornando  cada vez mais inaudível.Recusava-se a acompanhar a dona. Transformou-se num sopro, confundindo-se com o vento. Os cães já não uivavam.    


Conto escrito para o encontro de 29/04/2014




Maria Jeanine de Miranda Salvaterra ou  Jeanine Salvaterra, como assina,  é jornalista profissional  e mestra em Letras. Exerceu a profissão por mais de 30 anos. Atualmente trabalha como free-lancer. Teve a feliz oportunidade de dar aula em um programa voluntário, o PVNC(Pré-Vestibular para Negros e Carentes).Ama todas as formas de arte, mas sua paixão sempre foi a literatura. Fica feliz sempre que pode compartilhar essa preferência com outros seres apaixonados.

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