Mote do encontro 27/05
mote lido por Márcio Couto
A Insustentável Leveza do Ser
Quando era garoto e folheava o Velho
Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o
Bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, nariz, uma
barba comprida e eu dizia comigo mesmo que, como ele tinha boca, devia comer. E
se comia, devia ter também intestinos. Mas essa ideia logo me assustava, porque
apesar de pertencer a uma família pouco católica, eu sentia que a ideia dos
intestinos de Deus era sacrílega.
Sem o menor preparo teológico,
espontaneamente a criança que eu era então já compreendia, portanto, que existe
incompatibilidade entre a merda e Deus e, consequentemente, percebia a
fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã segundo a qual o homem
foi criado à imagem de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem de
Deus e então Deus tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se
parece com ele.
Os antigos gnósticos sentiam isso tão
claramente quanto eu aos cinco anos. Para resolver esse maldito problema,
Valentim, grão-mestre da gonse do século II, afirmava que Jesus "comia,
bebia, mas absolutamente não defecava".
A merda é é um problema teológico mais
espinhoso que o mal. Deus deu liberdade e, portanto, podemos admitir que ele
não é o responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela
merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, e somente a ele.
KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo, Ed. Companhia de Bolso, 2009.
KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo, Ed. Companhia de Bolso, 2009.
Milan Kundera nasceu na República
Tcheca. Desde 1975, vive na França.
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