Elisa pede desculpas - Francisco Ohana


Elisa pede desculpas


Ao ouvir o ruído da gravação das fitas cassetes, os irmãos se lembrariam da noite em que a mãe acendeu a luz do quarto e acarinhou os filhos. As crianças fingiam dormir quando Elisa adentrou o cômodo, sentou-se ao lado da garota e beijou-a. Depois, ao lado do garoto, e beijou-o. Na beirada da cama, próxima à cabeceira, como quem pede licença para tatear a intimidade de um estranho. Os dedos – a aliança de casamento fosca num deles – corriam pelos cabelos de ambos, entre porções mais ou menos úmidas do suor do cobertor, o menino mal pode disfarçar o tremer das pálpebras forçosamente fechadas. A menina fingiu melhor, pois meninas fingem melhor. Conversavam havia pouco sobre o ocorrido no fim da tarde, horas antes, no gramado dos fundos do quarteirão, território proibido aos pequenos. Ali, Elisa e alguém, Elisa entre abraços. Na manhã seguinte, segundo o costume: frutas, pães, ternos e o suplemento de cultura sobre um canto, à direita da mãe. Um café da manhã à ausência, todos os sentimentos e ausências de sempre. On t’embrasse, l’absence. Teria sido melhor que um dos dois, pai ou mãe, houvesse desaparecido a partir de então, de alguns ponto antes no tempo, o que não aconteceu. Famílias felizes se parecem, as infelizes também. Foram deixando a cena a longo prazo, não como quem se retira, mas embaça no gelo seco. Elisa ausentava-se dia após dia, esvaziando-se da rotina, em insidiosa demissão. Menos instantes, cigarros, salas de estar, tarefas ou ordens a quem quer que fosse. O pai a tudo ignorou, no melhor estilo masculino: sentava-se torturado à mesa e tolerava a refeição, a mulher e os filhos, que cresciam por inevitabilidade e compartilhavam consigo próprios os sucessos da escola, uma boa nota em português, um gol na aula de educação física, uma estrela no caderno ou o gosto de um novo caramelo. Cresciam por falta de alternativa – o processo não tinha graça alguma. Pouco mais tarde teriam eles mesmos seus amores, casamentos e filhos adocicados por avós cotidianos e pouco originais. O ciclo retornava do vale, perfazia seus períodos na ascensão e queda das gerações, em que uns substituem outros. Um estranho parte longínquo, outro alheio, mais adiante, e partem por fim os próximos. Partem, também, os pais. Elisa, sem muito alarido, consumida com paciência por doença decorrente do mau hábito. O pai, num Rio nublado – e em dias nublados tudo parece mais banal e particularmente despropositado. O contorno da copa das árvores, o retorcido dos troncos, o frio, a luz de outono eram todos ironia e despedida. O funeral revestiu-se de ocasião oficial – o dia, algo literário –, a ocupação do pai, homem de finanças, vazio de filosofia, pleno de ação e pragmatismo de comerciante, remendo da Anglo-Saxônia. Estavam à saída do cemitério no momento em que um velho de ar discreto aproxima-se do casal de irmãos, sorri para os netos do morto e entrega à mulher uma caixa cheirando a madeira, feito resquício de quitanda. Cuidadosamente, para não se ferir nas farpas do caixote, ela o abre e vê as fileiras de pilhas de cassetes. Seu acinzentado, os detalhes rubro-negros, quaisquer letras brancas compunham o poema da tarde fúnebre. Ao ouvir o ruído da gravação das fitas, os irmãos se lembrariam da noite em que a mãe acendeu a luz do quarto e os acarinhou, quando fingiam dormir. Naqueles rolos delicados estava toda a história: diziam do pente que percorre as melenas envelhecidas, da voz de um homem no fundo do quadro, do latido de um cachorro, de um poema de Bandeira, dos silêncios e das cantorias incompletas, interrompidas por estranhas demandas de atenção. “Vivi com tua mãe. Ela pediu que lhes entregasse isto”, dissera o velho de olhar inofensivo, diante de outros olhares, que arregalavam. “Ela gostava de ir ao zoológico, programa não muito diferente deste. Mesmo os gramados e os jardins são parecidos, mas ali se observam os bichos, a vida”, completou. “Hoje, vou a lugares por que passamos”.

Conto escrito para o encontro de 29/04/2014



Francisco Ohana é economista, tem 29 anos e participa de atividades que o mantenham ligado às artes, principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.

Comentários

  1. Nossa, que lindo esse conto! Esse blog está permitindo que eu possa acompanhar os contos e produções do clube, de pessoas novas que ainda não conhecia, novas escritas, nova respiração, novo ar. Perdi ao vivo, mas ler por aqui acaba sendo melhor, porque a gente fica atenta aos detalhes. Belo texto, parabéns!

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  2. Muito lindo mesmo, poético e narrativo com equilíbrio, um conto complexo, bom do início ao fim. Parabéns, Francisco!

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