O Universo Oculto do São João Baptista

por Morena Madureira 

O universo oculto do São João Batista

Ele era daquela profissão que agora quase que não existe mais. Aquela que deram na mão de outro pra fazer, sem pra isso aumentar seu salário. Corte de custos. Corte de custos supérfluos. Ele era trocador de ônibus. Demitido, foi ser coveiro no cemitério São João Batista.

Nos primeiros dias não achou nada demais, tinha ficado tanto tempo sem trabalho que só pensava no salário que finalmente ia voltar a ganhar. Contas penduradas, cheque especial no talo, e ter que depender do salário da mulher pra seguir sobrevivendo. Não, daquele jeito não dava não.

Além disso, ele não via os mortos mesmo. Nada, já chegavam com o caixão fechado, segurado por parentes chorosos, os homens da família. Primo, filho, amigo do botequim. As mulheres vinham atrás, abraçadas umas às outras, enxugando as lágrimas com seus lenços coloridos.

Mas isso foi só no começo, porque depois eles começaram e ficou tudo diferente. Eles, os enterrados. Os falecidos. Os finados. Começaram. Um a um. O primeiro na verdade foi uma senhora. Dona Terezinha. Foi entrar debaixo da terra que ela começou a gritar. “Safados! Safados! Vão pegar todo meu dinheiro e gastar com puta, viado e bicheiro. Bando de bastardos que coloquei no mundo! Imprestáveis! Puta, viado e bicheiro!”.

Ele tomou um susto que só vendo. Quase caiu pra trás. O parceiro daquele enterro quase se acabou de rir. A cara dele branca, as pernas balangando. E sabe por que o filhodaputa ria? Porque também já tinha sido iniciado no mundo dos mortos. Já tinha perdido o cabaço naquele universo oculto chamado São João Batista.

Sim, era isso mesmo. Para quem trabalhava ali, os cerca de 40 funcionários, entre coveiros, seguranças, auxiliares de escritório, contínuos, faxineiros e até a gerente, aquele cemitério era como uma grande cidade dos defuntos. Todos falavam e interagiam de suas tumbas, gavetas ou mausoléus.

Havia brigas, cantorias, choros, desabafos, gargalhadas, tudo mesmo que costuma sair da boca de uma pessoa viva emanava daquelas sepulturas, e nada adiantava para calá-los porque, infelizmente, os finados não ouviam os seres do lado de cá do túnel da morte.

Passadas algumas horas nas quais se lamentavam, reclamavam ou agradeciam pelas circunstâncias de suas passagens, ou nas quais xingavam ou trocavam juras de amor eterno com as pessoas que deixavam para trás, esse outro mundo não existia, era tão misterioso quanto para os de cá era o além-túmulo.

Aos poucos, ele foi se acostumando a ouvir aquela algazarra toda diariamente, que afinal de contas não era tão diferente do seu dia a dia nos coletivos cariocas. Ali era possível até escutar o que tinham a dizer alguns hóspedes famosos do São João Batista, já aquele era o cemitério das estrelas.

Aí todo dia ele fazia uma espécie de ronda enquanto esperava chegar um novo morto para ser enterrado. Passava pelo túmulo de Chacrinha, Tom e Vinícius, Mario Lago, Carmem Miranda, Dorival Caymmi, Clara Nunes, Nara Leão, Oscarito, Otto Lara Rezende, Clementina de Jesus, Nelson Gonçalves, Bussunda e até Leila Diniz. Cada qual falando, cantando, conversando, reclamando, chorando, rindo ou praguejando como se ainda estivessem em vida.

Também havia os anônimos a expressar ao mundo as dores e delicias de suas existências defuntas, e foi justamente entre esses que ele encontrou Elisa. Ela vivia no túmulo da segunda fileira do cemitério, perto da entrada principal. Havia morrido de tifo aos 20 anos, pelo menos era o que dizia sua lápide, acompanhada por uma foto desbotada de uma jovem com os cabelos repartidos em duas longas tranças. Estava ali há mais de 80 anos.

Como morrera virgem, ainda noiva de um oficial da Marinha brasileira, Elisa não sabia o que era o amor carnal entre um homem e uma mulher. Mas não se engane se você acha que ela não tinha interesse em saber como era esse mundo. Ô se tinha. Passava o dia falando de sexo. Falando em como queria loucamente ser iniciada nos prazeres mundanos.

Ele foi se animando com a voz tão doce e ao mesmo tempo tão lasciva de Elisa. Passou a ter fantasias eróticas com ela. Sonhava com Elisa a suspirar por seus homens. “Calor! Fogo! Preciso de um homem! Um homem que me faça mulher, que me penetre, que me faça sua! Agora, vem, vem você, vem, vem, vem....”.

Os colegas coveiros, acostumados aos chamados desesperados de Elisa, já nem se abalavam mais com as palavras carregadas de luxúria da triste virgem do século passado, mas ele não. Com ele bateu diferente. Começou a responder à jovem quando via que ao seu redor não havia mais ninguém. Dizia a ela que ele era o homem que procurava. Que ele a queria, a desejava, que seria só dela se o quisesse.

Por um desses acasos que ninguém explica, um dia Elisa o ouviu. Ficou em êxtase! Todos os dias os dois trocavam juras de carícias futuras, narravam com detalhes o sexo apaixonado e também selvagem que fariam quando finalmente se encontrassem. Vez ou outra, ele se escondia para ficar sozinho com Elisa durante a noite toda, masturbando-se enquanto ouvia ela narrar cada toque que imaginava estar dando nele.


Um dia, foi descoberto pela esposa em sua mórbida traição. Ele falava dormindo e, em meio a um sonho com sua noiva-cadáver, se entregou. A mulher, que já não estava lá muito satisfeita com o casamento, acabou indo embora. E ele, louco de amor e sem nada mais que o prendesse à vida na terra, se enforcou numa manhã chuvosa de domingo, sem paciência para esperar que a morte o levasse naturalmente para perto de sua Elisa. Ele, porém, não tinha bala na agulha para o São João Batista. Foi para o Caju. E tomou no cu.   

Conto premiado em 2o lugar no encontro de 19/07/2016.

Morena Madureira é paulistana, jornalista e inventora de histórias


Comentários

  1. excelente menina morena!

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    1. http://66.media.tumblr.com/349863ed66b64461145361e94808f512/tumblr_nz039gDmSx1s2wsdzo1_500.gif

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  2. Morena Madureira surpreende na emancipação de seus temas e no estilo de real humor que prende o leitor e o leva a visitar novas dimensões da ficção. Claudia Lessa

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