Manutenção

Por Eduardo Villela

Primeiro, silêncio. Um pouco de paz. Então, o ronco. Oscilação rápida e contínua de engrenagens banhadas em óleo velho, pastoso. Quatro ou cinco segundos, e depois a brisa surda, sucedida de novo pela máquina operante, e mais uma vez brisa surda. Um motor que descansa, exala vento e volta a operar. Máquina de conservação e reparação.
É um som que está ali só para existir, não precisa de significado. Sentido tem o sistema de entretenimento, que começa a projetar filmes autobiográficos, histórias futuras, realização de desejos, lembranças distorcidas da infância. Hoje não é dia de terror ou frustração. Também não pode haver passagens que provoquem turbulências ou impressões de quedas bruscas. A ordem, que ninguém sabe de onde vem, é pacificar. A semana foi intensa.
Uma forte luz natural invade e ofusca a projeção, tomando seu lugar na tela. Um pouco de sabonete phebo preto, merenda, short adidas azul. E some a infância, porque o continente ora se movimenta.
Ele acorda com o próprio ronco da máquina. A passagem do sistema de entretenimento inconsciente para a percepção ao redor é como o ar entre a passarela e o vagão quando pulando para dentro do metrô. Gerúndio por um segundo infinito. “Sacolé a dois reais!”. Abre o olho. “Olha o mate!”
Fernando não sabe o que é sacolé, mate, não sabe de nada, porque o hiato dura mais que o normal. O intervalo − entre a projeção elaborada (por quem?) para entreter durante a manutenção de seus mecanismos físicos e/ou químicos e o que vem depois − o deixa sem compreender nada de sua existência e dos outros, de tudo.
Algo estranho e cheio de dentes está ali à sua frente, próximo de seu rosto. Peraí, agora me recobrei. O nada já sumiu. A mulher, que olha e sorri. “Recuperado?”, ela pergunta. Fernando esfrega os olhos e acha que sim. Como já é consciente de tudo à volta, pode pensar em nada sem ser um nada, entende à sua maneira o nada. O aparente nada que o fez recuperar-se do cansaço. É claro que sim, com certeza é uma nova pessoa. Desculpem os jantares caros, os carros novos, a moda, o consumo que grita, carente, mas agora sim.
É hora de levantar, recolher a canga, as cadeiras, o lixo. Ergue-se com um pouco de dificuldade, os dois andam até a barraca e pagam o que devem. Fernando procura na mochila a chave do carro. “Não viemos de carro, lembra?”
Lembra de novo do trabalho na manhã de sábado, a intensidade frenética da semana. Caminham até a estação de aluguel de bicicletas, por sorte há duas em bom estado. Bem conservadas, como ele, agora. O barulho do mar ainda entra nos ouvidos para acaricia-lo.
“Aquele email... Esqueci de enviar!”. “Manda na segunda-feira, amor”. “É. Você tem razão...”
Cada um sobe em sua bicicleta. Começam a pedalar pela ciclovia, invadem o bairro e ganham a lagoa. Seguindo devagar, observam as árvores e montanhas que já começam a ganhar tons rosados, acompanhando os cantos do céu.
Talvez, um cinema mais tarde.

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Conto lido no encontro de 19/07/2016


Eduardo Villela escreve nas brechas.




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