Solaris, de Stanislaw Lem

(Mote do encontro do dia 20/07/2016, lido por Guilherme Preger)


Quando tornei a abrir os olhos, tive a impressão de ter cochilado alguns minutos. O quarto estava banhado por uma penumbra vermelha. Fazia menos calor. Eu estava me sentindo bem, deitado, com as cobertas afastadas, inteiramente nu. A cortina só cobria metade da janela e lá, defronte de mim, ao lado da vidraça, iluminada pelo sol vermelho, havia alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um vestido de praia, branco, cujo tecido estava esticado no bico dos seios. Tinha as pernas cruzadas e pés descalços. Imóvel, com os braços bronzeados até os cotovelos, olhava-me por entre os cílios escuros. Rheya, com seus cabelos pretos penteados para trás. Encarei-a durante muito tempo, calmamente. Meu primeiro pensamento foi reconfortante: eu estava sonhando e consciente disso. Não obstante preferia que ela sumisse. Fechei os olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu lado. Tinha os lábios entreabertos, como de costume, num gesto de assoviar. Mas seu olhar era sério. Lembrei-me da véspera, quando fizera aquelas especulações a respeito dos sonhos. Rheya não havia mudado desde o dia em que a vira pela última vez. Tinh, naquela época, dezenove anos. Hoje teria vinte nove. Mas, evidentemente, os jovens não mudam, ficam eternamente jovens. Ela fixava-me com o olhar espantado de sempre. Tive vontade de atirar alguma coisa sobre ela. No entanto, apesar de se tratar de um sonho não tive coragem – mesmo em sonho – de maltratar uma morta.

- Coitadinha! Você veio me visitar, murmurei.

Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003. Tradução de José Sanz.p 73. 


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