Este texto

Por Marcos Bassini

Este texto não está sendo lido. Ele é apenas uma hipótese de um texto que fala de algo que teria acontecido, não fosse o

E mesmo que fosse, seria um texto incompleto, posto que falaria de algo jamais, que absolutamente, que nunca eu

Aliás, nem deveríamos fazer menção a este texto inexistente ou, ainda que houvesse uma ínfima fração desse texto, texto invisível, levando-se em conta que ele não revelaria absolutamente nada parecido com a nossa, quer dizer, com a minha, quer dizer

Não seria estranho imaginar que, além do texto, o leitor também fosse uma ideia, apenas, uma sugestão longínqua, uma projeção de algo que talvez

Não haveria, portanto, diante da impossibilidade de texto e leitor, um tema e, antes, portanto, não haveria uma saudade, um choro, um vaso quebrado na parede e a água escurecida das flores mortas escorrendo por esta parede que também não haveria, ou senão dificilmente

Nem mesmo antes da parede, aquilo mesmo que ergueria casa sólida, uma casa antes sonho, uma planta rabiscada num guardanapo fugidio, erguida em linhas imaginárias de um sentimento unidimensional, imaginada por

E entre o desencontro inicial e a casa de frágil solidez, um plano que se dissolveria no ar como o hálito da voz que o revelaria, um choro inaudível de criança, um aborto praticado antes da concepção, desejo que se segue ao orgasmo, imperceptível após a saciedade mas que sabemos, sim, sabemos já estar ali, desejo que

E até mesmo antes, antes, muito antes de ser vestígio impensável, possibilidade remota, quimera inexpugnável, sopro imprevisível, palavra impronunciável, suspiro inaudível, ou até mesmo

É como se morasse num tempo que de tão longínquo sequer saberia se existiu ou se durante a infância inventou de brincadeira, tão verídico quanto o amigo imaginário, cumprindo ali seu papel de éter, morando embaixo da cama com o monstro que meu pai dizia alimentado por mim, ou dentro da escuridão do armário que rangia, talvez fosse você aquele rangido, talvez a própria escuridão, talvez até

Mas agora está materializado na minha frente, é sólida rocha que minha cabeça fere, carne viva que me morde, naco que me mastiga, saliva que me engole, fome que me sente, fome, muita fome de


E não sei, realmente não sei como dizer pra você que eu não existo.


Escrito para o encontro do dia 19/07/2016

Marcos Bassini é redator, compositor e autor do livro de poemas Senhorita K (ed. Patuá).


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