Escuridão Adentro
de Beatriz Moreira Lima
Na
estrada escura, ela não enxergava nada. O homem ao seu lado dormia.
Bêbado. De súbito, o tranco forte e o barulho assustador. O carro
parecia haver despencado em uma ribanceira.
-
Mario! Acorda, homem! Acho que bati o carro! – ele não se movia, o
corpo pendendo para a frente, preso pelo cinto de segurança –
Merda! Homem inútil... Não dá pra contar com ele pra nada
mesmo...
Era uma mulher
independente. Não tinha medo do escuro. Tinha medo de estar, talvez,
pendurada à beira de um precipício. Queria sair do carro, mas temia
que sua movimentação o desprendesse de qualquer coisa que o
estivesse segurando. Os fracos faróis haviam se apagado com o baque.
Tentou acendê-los novamente, sem sucesso.
“Também, não estavam servindo para nada, com essa neblina...”,
pensou. Acendeu a pequena luz do teto. Observou que escorria um
filete de sangue da boca do homem. “Deve
ter mordido a língua... Bêbado!”.
A visão do homem
desacordado a seu lado a enchia de repulsa. Precisava sair do
automóvel. Pelos seus cálculos, não deviam estar longe de casa. No
máximo dois quilômetros. Nada que justificasse passar a noite no
frio e desconforto, presa dentro do carro com aquele porco.
Com todo cuidado,
abriu a porta. Primeiro só um palmo, mas, como o carro parecesse não
oscilar, deixou que a porta se abrisse totalmente. Depois, levou
lentamente a perna esquerda para fora do veículo, procurando o chão
com a ponta do pé. Encontrou terra firme e aparentemente plana.
Girou lentamente o corpo de frente para a porta, trazendo a outra
perna para o lado de fora. Plantou os dois pés no chão. Não via um
palmo à frente do nariz, mas o contato com o solo lhe dava segurança
para prosseguir. Levantou-se, segurando a porta com a mão direita.
Uma vez em pé, fora do carro, tateou à frente e encontrou algo que
lhe pareceu o tronco de uma árvore. Apoiou-se e respirou aliviada.
Agora era só questão de encontrar a estrada. Lembrou-se do celular
dentro da bolsa. A bolsa, dentro do carro, provavelmente no banco de
trás. Não valia a pena tentar encontrar. Sentia que seus olhos
começavam a se adaptar à escuridão. Ouviu o latido de um cachorro,
ao longe. Seguiria em sua direção.
Ainda bem que estava
de botas, pensou, enquanto enfiava, pé ante pé, no mato invisível
à sua frente. Tateando, foi se agarrando em troncos e raízes e o
que mais aparecesse e conseguiu subir até a estrada. O latido do
cachorro soava mais próximo. Devia ser o chato do cachorro do
vizinho. Só podia ser ele. Sentiu medo. O cão não era muito
amigável e, mesmo de dia, tinha receio de passar sozinha em frente à
casa, pois acreditava que ele era capaz de pular a cerca. Aliás,
muitas vezes ficava solto. Talvez fosse esse o caso, mesmo porque a
casa ainda devia estar longe e o latido parecia bastante próximo.
Parou um pouco no
meio da estrada. Aguçou os ouvidos. Sim, era o cachorro do vizinho.
Ponderou suas opções. Não eram muitas. Poderia ficar ali no meio
da estrada, voltar para o carro ou seguir em frente. Nenhuma delas
era muito segura, mas a última era a única que capaz de lhe
proporcionar ao menos um final de madrugada tranquilo. A névoa
estava se dissipando e o vento afastara as nuvens que encobriam a lua
cheia. Agora conseguiu enxergar a estrada. Respirou fundo e recomeçou
a caminhada.
Devia estar na
metade do caminho, quando ouviu o galope do cão se aproximando.
Gelou. E gelada, pensou: “você
não pode ter medo, o cachorro sente a adrenalina e aí ataca...
respira fundo, faz de conta que tá tudo bem...”.
Quando avistou o enorme rotweiller, ele já não galopava. Vinha pela
estrada, farejando o chão. Latiu na direção de um arbusto. Depois
sentou-se e uivou para a lua. Parecia não a ter visto. Ela continuou
andando, a fingir calma, sem sair da sua reta. Se o cachorro ficasse
parado, ela passaria a cerca de 3 metros dele. Mas ele voltou a andar
e farejar. Veio em sua direção. Ela parou, assustada. O cão passou
a meio metro de sua perna, sem olhar em sua direção, sem farejar,
sem latir. Era como se ela não estivesse ali. Um pouco mais adiante,
latiu para outro arbusto. Sentiu um frio na espinha, os cabelos da
nuca arrepiarem. Passou a mão na fronte, para afastar os cabelos.
Percebeu uma umidade estranha nos dedos. Levou a mão à altura dos
olhos. Estava cheia de sangue. Pensou que ia desmaiar.
Mas permanecia em
pé, no meio da estrada. O cachorro seguia calmamente, ora farejando,
ora latindo para os arbustos ou uivando para a lua. Tentou chamá-lo,
porém sua voz parecia não o alcançar. Melhor assim, pensou, e
continuou o seu caminho, escuridão adentro.
Conto escrito para o encontro de 19/07/2016
Beatriz Moreira Lima nasceu em 1970, é funcionária pública, mas sempre gostou de escrever. Teve um filho em 1998, publicou um livro em 2008 (“Tempos Férteis”, editora 7 Letras) e até 2018 pretende plantar uma árvore para completar a sua minibiografia. Enquanto isso, frequenta o Clube da Leitura
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