Adeus
por Gabriel Cerqueira
Olha, eu conheci um cara
legal e a gente tá ficando.
As palavras dela me atingiram
feito uma bala disparada por um revólver. Após um riso nervoso, que
naquele momento pareceu repleto de escárnio, ela continuou:
- Agora você decide o que vai
fazer com a sua vida.
Olhei para frente, estático.
Já estava preparado para aquela notícia. Sabia que um laço de
forca ornava meu pescoço e quea única coisa que faltava era que o
banco em que me sustentava fosse chutado. A ironia brincava; o
anúncio fora feito no metrô, debaixo da terra, num vagão mal
iluminado. O golpe fatal fora desferido já na cova.
Não fiquei tão abalado
quando pensei que ficaria. Não sei se foi a expectativa em
reencontrá-la que serviu como anestesia ou se o impacto foi tão
forte que me deixou atordoado. Durante a viagem – nosso caminho era
o mesmo – olhei de soslaio para ela diversas vezes; ela se afundara
no celular e beliscava seu lábio inferior ocasionalmente, um claro
sinal de que estava apreensiva.
Eu ainda a amava e ela sabia
disso. Após o término do relacionamento continuamos amigos em
virtude dos fortes laços de afinidade que nos unia. Laços estes que
me fizeram pensar que ela ainda gostava de mim dado o modo como
falava comigo, os olhares que me lançava, nossas conversas, tudo
continuava como antes e durante o relacionamento, sendo apenas
desprovido de beijos e de momentos mais íntimos. Mas ela não me
amava mais. Iludi-me. Bebi veneno enquanto pensava beber a água da
vida. Ao final da noite daquele dia, ao repousar minha cabeça no
travesseiro para dormir, dizia para mim que era apenas um pesadelo e
que tudo voltaria ao normal na manhã seguinte.
Mas o pesadelo continuou. A
voz aveludada tomara um tom rígido, o olhar antes inundado por
ternura tornara-se um abismo, o riso cheio de alegria e paixão era
agora seco e dissimulado, fingido. Era assim que ela tratava as
outras pessoas quando éramos próximos, e assim ela começou a agir
comigo. Havia me tornado um dos outros.
Errei muito, não nego, e
agora era a hora de pagar por meus pecados. Teria que a ver por todas
as noites até o fim do ano. Tão perto, mas tão longe. Havia uma
barreira entre nós que era quase palpável de tão sólida que se
demonstrava. Algo dizia-me que era para me manter longe, mas não
obedeci. Mesmo assim tentei manter a amizade, ficar perto dela era
melhor do que nada, mas apenas morri mais ainda. Uma vez ela me
chamou pelo nome do Outro num momento de distração.
Foi quando surgiram os
fantasmas. Primeiro vieram dois de uma vez só: Eu e ela quando ainda
nos amávamos. Eles estavam por toda parte: Ruas, parques, cinemas,
museus. Sempre de mãos dadas, ocasionalmente se beijando e se
abraçando. Seus risos e palavras de amor ecoavam pela minha
memória.Nunca
fui tão feliz em minha vida. Nunca fui tão amada. Ficaremos juntos
para sempre. De
vez em quando meu fantasma desaparecia e o fantasma dela pensava que
eu era ele. Ela segurava as minhas mãos e sorria – sua boca era
uma meia lua e seus olhos ficavam tão fechados que permitia que
apenas seus brilhos fossem vislumbrados por entre as pálpebras. Era
frequente que pedisse carinho e que inclinasse a cabeça para que eu
beijasse sua testa.
O terceiro fantasma não tinha
forma visível e era zombeteiro. É
tarde demais,
ele dizia, rindo. Perdeu
muito tempo. Tarde, é tarde. Ele
também pronunciava o nome dela com meu sobrenome, como se eu e ela
fôssemos casados. Ele me dizia tudo o que fiz de errado e tudo de
certo que deixei de fazer, sempre rindo de deboche.Como
pôde ter sido tão idiota?
Certo dia o quarto fantasma
apareceu, o mais assustador de todos eles. Era ela, enlouquecida,
tomada pela cólera e aflição. Gritava toda a dor que a causei, me
perguntava o porquê de eu ter feito o que fiz, me agredia, chorava,
lamentava. Somados à voz dela também havia minha própria
consciência que ora estava abalada, ora me julgava
impiedosamente.Toda mágoa não dita desabava sobre mim. Algumas
vezes o fantasma dela queria me matar, desferindo golpes em pontos
vitais. Minha carne nunca foi atingida, mas minh’alma estava
destroçada.
Minha fértil imaginação
criou mais dois fantasmas: O Outro e ela. Mas eles apareceram somente
três ou quatro vezes. Fiz questão de logo fazê-los desaparecer
senão o pior poderia acontecer. Os prédios mais altos já
conversavam comigo, ganhando minha simpatia e me convidando a
experimentar o doce sabor da gravidade.
E os fantasmas iam para onde
quer que eu fosse. Nos piores momentos eles apareciam todos ao mesmo
tempo. Comecei a buscar fuga no sono. Fui agraciado com noites sem
sonhos e punido com pesadelos excruciantes. Passei dias em plena
decadência enquanto caminhava à beira da loucura. Me isolava cada
vez mais. Um dia minha família não suportou mais a minha situação
e me forçou a me olhar no espelhopara chamar minha atenção para
uma possível mudança de estado de espírito. Relutei, mas estava
tão fraco que acabei sucumbindo às diversas tentativas. Estava tão
magro que minha pele estava colada aos ossos – e ela havia se
tornado transparente e a pouca carne que me restava estava
verde-azulada -, meus olhos estavam leitosos como os de um cego, meus
cabelos e minha barba estavam brancos e quebradiços, no rosto
encovado uma expressão de profundo terror e tristeza. No fim das
contas eu me tornara o fantasma.
Pousei a pena ao terminar a
frase anterior. Algum tempo se passou desde a narrativa e agora,
quando escrevo minha história. Minha pele ainda está um pouco
translúcida e minha carne está em tons de cinza; para curar-me fui
submetido a um tratamento que tornou minha matéria orgânica
totalmente incolor para depois recuperá-la por completo. Na cor
residia a essência da minha vida e no ponto mais crítico do
desespero ela começou a me abandonar espontaneamente. Olho para
minha mão, ainda descarnada, dolorida pela escrita. Meu
sanguevoltara a ser vermelho e posso vê-lo indo e vindo pelas minhas
veias. Fecho os olhos e respiro fundo. Passo minha mão pela minha
cabeça e sinto os curtíssimos e espetados fios de cabelo que
crescem pouco a pouco. Volto meu olhar para a janela e observo os
galhos das árvores balançando ao vento neste dia ensolarado. O
mundo não parara de girar, o Sol ainda brilhava e todos viviam suas
vidas. Ainda ouço as vozes dos fantasmas – ainda os vejo, mas não
com a frequência de antes -, só que agora me sinto mais em paz. Sei
que terei que conviver com eles durante mais algum tempo.
Conformei-me. Sentado em uma cadeira - o caderno e a pena pousados na
mesa à minha frente - nesta sala de jogos da casa de repouso, aqui
enquanto escrevo, penso no que vou fazer para seguir adiante e chego
à conclusão de que ainda não sei, mas tenho certeza de que deverá
ser algo que fará todo o sofrimento valer a pena. Algo que
transformará as lamúrias e o escárnio dos fantasmas em cantos de
júbilo.
Do outro lado da sala, em
outra mesa, há um jogo de xadrez. Exércitos de dolomita e ônix se
encaram no campo de batalha. Perdi a alva Rainha. Tragédia? Apenas
se não reconhecer a importância das peças que restaram no
tabuleiro.
Conto lido no encontro de 19/08/2016
Gabriel Cerqueira sempre pensou que era um peixe fora d'água. Só que, em vez de ser peixe, talvez ele seja um oceano
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