Empenhar ou derreter?



Gilberto nunca teria feito aquilo, não fosse pela necessidade. Não era o seu perfil. Ele nem sabia direito como funcionava uma penhora. Foi até o banco e pegou as informações. De imediato, lembrou-se de sua tia-avó, dona Irene, que morou na zona norte, onde Gilberto, quando criança, passava semanas sozinho durante as férias escolares. Eram as férias mais tristes que trazia na memória. Às vezes, as imagens daquele tempo apareciam de repente na sua cabeça e seu estômago encolhia como um tatu-bola. Quando se aproximava o final de cada semestre, e as aulas estavam para terminar, Gilberto mais uma vez tentava persuadir seus pais para que desistissem de entregá-lo aos cuidados da tia Irene.

Agora que sabia do que se tratava uma penhora, Gilberto viu que, na situação em que se encontrava, era sua única saída. Não tinha jeito. Estava sem um tostão e o que ainda possuía de valor, que poderia transformar em dinheiro, eram as alianças, a sua e da sua mulher. A doença e a morte da esposa, Maria, um ano antes, foi o que complicou de vez a sua vida financeira, depois de desmantelar seu equilíbrio emocional e destruir sua saúde psicológica. Dentro da agência bancária, Gilberto aguardava na fila quando, num flash-back, viu a imagem de tia Irene, ali na frente, também aguardando para fazer a penhora dos seus bens e segurando a mão de Gilberto-menino. Era um ritual que ele acompanhou por toda a infância. Mas, só agora teve a noção clara pelo que passou aquela mulher a quem tanto odiou. Tia Irene viveu tudo aquilo às escondidas. Reverberava pelas paredes da agência bancária o eco das palavras ríspidas da tia-avó ordenando que Gilberto nunca falasse daquilo com ninguém, nunca! Só então, décadas depois, ele pôde entender que ela fazia aquilo por pura necessidade, e não para atormentar a sua vidinha infantil medíocre e transformar suas férias na sequência de momentos inócuos de que se recordava.

Distraído, aguardando chegar a sua vez de ser atendido, tirou o par de alianças do bolso e passou a observar seus detalhes. Estranhou. Na parte interna de sua aliança lia gravado "Gilberto & Maria". Porém, na aliança que seria de Maria leu "Vitória & Leandro". Vitória & Leandro? Vitória & Leandro? Era o casal de amigos mais próximos deles. Foram, inclusive, seus padrinhos de casamento, por parte de Maria. Tudo se embaralhou. Como empenhar uma história? Como deixar guardada no cofre do banco uma dúvida, um mistério que o atormentaria? Gilberto saiu da fila e foi para casa sem um tostão e com um novo problema para resolver. Passou um bom tempo tentando tomar alguma decisão, até que ligou para o casal de amigos.
- Gilberto? Como você está? Penso muito em Maria. Que coisa horrível, meu Deus. Maria não me sai da cabeça.
- Imagino. Preciso encontrar com você, falar com você.
- Claro. Vamos marcar um jantar...
- Só você. Sozinha. Se puder, ainda hoje.
- Mas... Tá bom. O Leandro ia gostar...
- Só você. Pode ser?
- Sim, claro.
Eles não se viam desde o velório, um ano antes. Passadas as formalidades do encontro no café, Gilberto olhou fundo nos olhos de Vitória. Em silêncio, puxou a carteira do bolso da calça, de onde tirou a aliança, colocando-a sobre a mesa.
- Leia.

Com um olhar de espanto, Vitória leu a gravação. Amuada, enquanto seu queixo aproximava-se lentamente do peito, foi tirando, de forma mecânica, a aliança que trazia no dedo. Repousou a joia ao lado da outra. Ergueu somente os olhos, encarando com humildade o olhar de indagação de Gilberto. Vitória pegou a aliança que ele trouxera colocando-a no dedo nu. Ajeitou a alça da bolsa no ombro, levantou-se, deu as costas para Gilberto e saiu para a rua. Gilberto delicadamente conferiu "Gilberto & Maria" gravado no interior da aliança que Vitória deixara na sua frente, sobre a mesa. Uma única lágrima se espatifou na fórmica preta, respingando microscópicas gotículas d'água na superfície dourada do anel. Gilberto respirou fundo, saiu da mesa decidido, pagou o que devia e correu para a rua, tentando chegar ainda em tempo na agência, antes que encerrasse o horário de atendimento.

Conto escrito por Walter Macedo Filho para o encontro do dia 05/07/2016

Walter Macedo Filho É dramaturgo, jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural. Integrou o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho. Como gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca Dicró, Biblioteca Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu primeiro livro de contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras.



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