Perguntas de Curumim


Por: Eduardo Villela


       Pedro deitou a folha de papel em branco diante de si, no chão da sala. Queria criar uma fábula sobre adultos. Uma fábula em que as pessoas apenas afirmavam, nunca faziam perguntas. Os adultos eram assim, para ele. Os amigos dos pais que visitavam a casa à noite não faziam perguntas, só diziam coisas. Não sabia ainda se ia desenhar ou contar a história em texto. Ou se os dois juntos. As pessoas que iam lá só tinham algo a dizer, nunca a saber. Por que eram desse jeito, ele não sabia responder. Precisava compreender isso rápido, antes de ficar adulto. E se amanhã, de repente, eu virar adulto e não mais poder perguntar isso, também? Nunca vou saber?
       A fábula era sobre uma aldeia em que não se fazia perguntas. Podia se passar nos dias de hoje, no futuro, antigamente. Mas era uma tribo que vivia no meio da floresta, sem ninguém por perto num raio de muitos quilômetros. Eles quase não tinham contato com outras aldeias, até o dia em que chegou um forasteiro. Essa pessoa se portava igual a todas as outras da tribo, com praticamente nenhuma veste. Também era moreno, cabelo liso, e olhos um pouco puxados como eles.
       Não demorou muito para o estrangeiro ser aceito na tribo, porque não procurava briga com ninguém e ajudava com afinco nas tarefas diárias. Mas um dia ele e outros homens faziam reparos numa oca que havia sido danificada pelo vento, quando disse assim: “Se o vento normalmente vem de lá, por que vocês não reforçam este lado com mais palha e alguns pedaços de madeira?”
      Os outros estranharam e ficaram se olhando, mas não responderam, deixaram pra lá. Talvez ele estivesse doente ou confuso. Porém, no dia seguinte o estrangeiro fez novo questionamento. “Por que os caçadores saem sempre em dupla? É para carregar os animais abatidos com mais facilidade ou por segurança? Ou os dois?”
      Dessa vez, foram três perguntas em uma só e os índios da aldeia não sabiam lidar com aquilo. Que coisa esquisita essa pessoa adulta que pergunta as coisas. Perguntar é coisa de curumim, ora. Só tem utilidade quando você está crescendo e aprendendo as coisas.
     Esses foram só os primeiros de muitos questionamentos que o índio visitante passou a fazer todos os dias. Ele começou a se desentender com a tribo, porque por um lado não compreendia por que ninguém respondia e, por outro, ninguém entendia também como podia existir alguém que fazia perguntas sem ser curumim. 

      Nesse ponto, Pedro não sabia como continuar a história. Lembrou que na conversa dos amigos dos pais um falava uma coisa e o outro também, às vezes um interrompia o outro ou até falavam ao mesmo tempo. Imaginou os índios da tribo que inventara fazendo isso também, e o visitante não entendendo nada. 
    E foi o que começou a acontecer na história. Como era o único que perguntava, o coitado começou a se sentir um pouco solitário no meio daquela gente. Será que já sabiam tudo e por isso não precisavam perguntar nada? Se diziam que só curumim tem questões, então é porque ao virar adulto a gente passa a saber tudo, depois de tantas perguntas que quando curumins fazemos? Será que havia algo de errado com ele? Nossa, quantas perguntas estou fazendo! Ainda bem que não estou falando em voz alta, só pensando. Mas peraí, será que nenhum desses outros índios tem também coisas guardadas a querer saber?
    Especialmente para esta última pergunta ele queria uma resposta, e por isso resolveu procurar o pajé. Para sorte ou azar, o nosso forasteiro não era uma pessoa introvertida. Ele falava sempre o que vinha à cabeça.
     “Anauê, Pajé Anhanguara.”
   “Anauê, visitante.” Ele já estava há meses na tribo, mas mesmo assim ainda era chamado de visitante.
    “Posso fazer uma pergunta, com todo o respeito?”
    “Hã. Mas você já está fazendo...”
  “Os índios dessa tribo não têm mesmo perguntas a fazer, ou só não podem fazer perguntas?”
    O pajé Anhanguara ficou desconcertado, porque não esperava por aquilo. Nunca havia enfrentado uma situação como essa. Então olhou para o chão, para o céu, foi lá dentro da oca, voltou com uma flecha, sentou na frente do visitante e ficou afiando, sem responder. Desanimado, o nosso forasteiro foi embora dali.
    Os dias passaram, e agora todos olhavam estranho para ele, que, coitado, percebeu que aquela aldeia não era mais o seu lugar. Comunicou ao cacique que ia embora, e partiu.

    Pedro terminou a fábula e ficou pensando no que teria acontecido com seu índio curioso se continuasse na tribo. Será que cometeriam alguma violência contra ele? Não queria que a tribo da sua história fosse má. Também tinha muito medo de, um dia, não mais poder fazer perguntas. Levou a história para os pais, que naquela noite tinham visitas na sala.
    O pai pegou a folha de papel, leu e depois deu um beijo em sua testa, dizendo. “Muito bom, filho”. Então Pedro resolveu fazer pergunta parecida com a do índio na história, agora a seu pai.
    “Pai, por que os adultos não fazem perguntas?”
    “Eles fazem sim, filho, mas só em momentos adequados pra isso.”
    “Quando são esses momentos, que nunca vejo?”
    “Em salas de aula para adultos, congressos, palestras...”
    “Por que não podem fazer perguntas em qualquer lugar, como agora?”
    “Porque têm que se defender das lanças uns dos outros, filho.”
   Pedro ficou intrigado com a resposta do pai, que usou um elemento da sua própria história, as lanças indígenas. Continuou com medo de não mais um dia poder fazer perguntas, tinha que pensar uma solução para aquilo. Poxa, não faz sentido. Se perguntamos para ficarmos mais conhecedores das coisas e inteligentes e um dia paramos com isso, ficamos todos mais burros.
    Dali pra frente, passou a crescer tentando encontrar a solução para esse problema. Que não deixaria de existir, mesmo depois de adulto.

(Conto lido no encontro de 23/08/2016 sobre mote de Clarice Lispector)


Eduardo Villela está preparando seu primeiro livro de contos, "O Interesse pelas Coisas".

Comentários

  1. Este conto nos leva a refletir a vida adulta, o comportamento das pessoas e até sobre orgulho, humildade, vontade de acertar e sobretudo coragem.

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  2. Muito bom; nos leva a uma reflexão sobre orgulho, falta de humildade, vaidade, medo de se expor.

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