MAO GO
por
Guilherme Preger
Um
guerrilheiro deve estar no meio da massa como um peixe no oceano,
dizia o camarada Mao. A multidão deve ser a extensão de minha pele
em mil faces e facetas, multiforme, multitudinária, multiarticulada.
A massa me protege com sua cor e calor e mimetizo-me em sua imensa
variedade físico-corporal. Ser o um qualquer, o cara da esquina, o
homem do povo. Afinal, minha tarefa é a missão do povo.
Por
causa dessas olimpíadas, removeram milhares de famílias pobres de
suas casas. Por causa dessas olimpíadas prenderam inocentes que
sequer cometeram um crime. Por causa dessas olimpíadas deram um
golpe no país, afastaram uma guerrilheira honesta da Presidência,
para melhor reprimir o povo e garantir o megaevento e o lucro dos
financistas globais.
Me
aproximo da estação do Maracanã, no metrô lotado e festivo. Estou
alheio a esse clima de alegria forçada. Estou cansado da falsa
alegria dos aparelhos midiáticos. Estou cansado dessa servidão
voluntária do capitalismo. A alegria do espetáculo é outra forma
de tristeza. O povo em si não tem culpa disso e apoia o espetáculo,
pois não sabe o que faz e não tem escolha. Nós lhe daremos
escolha.
Desço
a rampa com o ingresso na mão. Há muitos militares por toda sua
extensão. Não carrego mochila conforme instrução, apenas meu
celular, de uma marca popular chinesa, mas ainda pouco divulgada no
Brasil. Era o ponto de falha, mas passa despercebido. Ninguém
examinou meus óculos. E tem também meu chapéu, um chapéu grande
de tecido. Policiais revistam meu corpo, apalpam minhas calças, mas
conforme previsto, não examinam meu chapéu. Passam o detector de
metais que nada assinala. Não inventaram um detector para objetos de
plástico. Imbecis como todos os policiais. Sorrio como um idiota
coxinha. Ninguém, rigorosamente ninguém, me questiona. Montaram um
esquema colossal de segurança, mas não estavam preparados para
evitar as coisas mais simples. Um guerrilheiro deve ser simples.
Meu
ingresso, adquirido especialmente para essa missão, dá direito a
uma posição na fileira mais superior da arquibancada. Alcanço
minha cadeira como previsto. Está vazia, pois os lugares superiores
são os últimos a serem ocupados. Não há ninguém às minhas
costas, só o painel envidraçado do corredor superior. Estou na
ponta da fila, ao lado da escada.
Cheguei
no adiantado da hora. Aproveito para testar meus óculos. Fingindo
limpá-los acerto as posições da lente. Ela é feita de material
que me dá uma visão de teleobjetiva. Observo de minha posição
estratégica as posições de camarote onde ficarão as
personalidades do mundo político-midiático-espetacular. Confere com
as posições do GPS analisadas anteriormente no preparo técnico.
Os óculos me permitem um zoom perfeito de longa e curta distância.
Vejo as cadeiras do camarote como se estivessem na minha frente.
Há
uma enorme ressonância de vozes no estádio. Me movimento em
sincronia com a massa, pois estou mimetizado nela. Faço a onda,
aplaudo as informações do placar. Esse estádio costumava ser o
maior do mundo. Era o templo da massa, da galera, do povo. Vim muitas
vezes a ele quando cabia mais de cem mil pessoas. Mas fizeram uma
reforma burguesa para pagar as empreiteiras. O capital privado está
fortemente atrelado à engenharia civil e à especulação
imobiliária.
Começa
a solenidade espetacular e começam a entrar as personalidades. A
maioria dos países mandou representantes, mas não vieram os
presidentes, porque não querem participar da farsa do golpe
brasileiro.
E
entra afinal o canalha usurpador. Como um vampiro, sugador de sangue
do povo, com sua cara de mordomo morto-vivo. Eu sou guerrilheiro, não
posso me nausear, meu estofo é outro. Me emociono quando ouço uma
enorme vaia se instalar. Mas as caixas de som do estádio aumentam de
volume ensurdecedoramente com uma canção de Anitta para abafar a
vaia monumental. Parte da massa canta junto, outra continua a vaia. O
golpe dividiu o povo. Eu preciso controlar minha revolta. A massa
não sabe o que faz. A ela não deram alternativas, mas nós daremos.
E canto também Anitta, pois minha missão é mais importante do que
minha revolta particular.
As
famílias que estão ao meu redor estão totalmente esfuziantes de
presenciar a abertura das Olimpíadas e não prestam a menor atenção
em mim. O guerrilheiro deve ser invisível, disse o Camarada, e eu
penetro a invisibilidade do ser-multidão. Estou no meio da massa,
sou parte dela. Ninguém me distingue.
Começa
o desfile das nações com seus atletas e bandeiras. Aplaudo
discretamente a delegação chinesa, cubana e venezuelana e de todos
os países africanos. Mas estou em missão, e quando entra a
delegação americana, torço com maior fervor. Foi o único momento
em que meus vizinhos pareceram me observar. Creio que cometi um
equívoco me excedendo.
Com
meus óculos, faço zoom no fantoche vampiresco. Seu sorriso parece
ser de formol. Ele é apenas um títere, assim como sua esposa que
está ao seu lado é uma boneca plástica. É impossível sentir
compaixão por figuras tão lastimáveis.
Está
chegando a hora do momento decisivo. Todo o estádio está prestando
atenção na top-model brasileira. Nessa hora, tiro meu celular do
bolso e abro o aplicativo especial. Me abaixo, como se fosse amarrar
meu sapato. Ninguém me percebe. Retiro meu chapéu discretamente,
solto o velcro e dele sai o pequeno bólido, o drone de plástico.
Ele voa pelo corredor das escadas como um pássaro liberto. Quase
ninguém o percebe, mas quem o observa, acha que ele faz parte da
festa, colorido em verde-amarelo e com uma pena indígena vermelha
Kaiowá. Algumas crianças batem palmas para ele e o apontam para
seus pais. Eu o controlo pelo aplicativo do celular, uma adaptação
revolucionária de um game japonês, mas modificado por hackers
chineses. Ele voa na direção determinada, eu só preciso fazer
pequenos e discretos movimentos com o celular.
Imbatível
porque indistinguível no meio da profusão de luzes de leds, telões
3D e ruídos intensos, ele paira agora defronte de sua vítima, o
usurpador. Com o zoom de meus óculos especiais eu observo a cena.
Ninguém o detecta, mas por um instante o vampiro, como se movido por
um pressentimento, faz um leve movimento de cabeça e olha para o
drone-pássaro indígena. Chega a esboçar um sorriso como se
estivesse vendo uma ave exótica desse país que ele não conhece e
ajuda a devastar. Mas logo sua face muda de semblante. Aperto o ícone
de disparo e uma pequena seta indígena de levíssima madeira parte
do bólido voador e atinge a testa do traidor. Ninguém percebe nada,
nem sequer sua esposa que, inebriada como falsa primeira-dama,
assiste a pira olímpica ser acesa. Ela só sente um corpo desabar
inopinadamente ao seu lado.
O
Camarada Mao disse: “Há um grande caos abaixo dos céus. A
situação é excelente”.
Guilherme
Preger é escritor esquerdopata
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