Flor Vermelha

Uma menina estava com raiva. Seus pais a levaram a um museu contra a vontade dela e eles já estavam há duas horas na fila. A menina vestia um vestido vermelho, meia-calça branca, sapatilhas pretas e um casaco do Mickey Mouse tão grande que as mangas cobriam suas mãos. Um laço vermelho fora cuidadosamente amarrado aos seus cabelos castanhos. A menina gostava muito da cor vermelha. Após mais alguns minutos eles puderam entrar no museu.

As portas da exposição foram abertas e primeira pintura a ser contemplada foi uma natureza morta: peras, uvas e maçãs em uma cesta. “Tem uma cesta de frutas na cozinha de casa”, a menina pensou. O próximo quadro era um retrato de uma menina com uma fita verde na cabeça. “Eu poderia ficar na frente de um espelho usando uma fita com uma cor bem mais legal”. Outro quadro era uma representação abstrata de duas pessoas conversando. “Meus desenhos são melhores”.

E assim os minutos foram passando. Durante aquele tempo havia apenas uma coisa divertida: observar a expressão inteligente que os adultos faziam ao observar aquele amontoado de tintas nas telas que, muitas das vezes, não faziam o menor sentido. Mas tudo mudou quando a menina viu uma escada de madeira pintada de branco posta a uma das paredes do primeiro salão daquela exposição e ninguém pareceu notar a presença dela lá. Um homem atravessou a escada e ela se desfez como se fosse uma nuvem, e logo depois voltou à sua forma original. A menina esfregou seus olhos com suas mãos, duvidando do que tinha visto.


De repente, um homem atravessou o teto descendo pela escada. Ele carregava um cavalete e bisnagas de tintas; depois ele colocou os objetos no chão e subiu os degraus da escada até desaparecer no teto. Segundos depois lá estava o homem descendo pelos degraus novamente, desta vez carregando pincéis, um banquinho e telas. Levou todos os objetos ao centro do salão, posicionando-se em frente a um quadro que mostrava um riacho e um bosque. O homem vestia roupas antigas e parecia estar feliz. Ele pegou uma aquarela, que estava presa ao cavalete, e espremeu as bisnagas deixando que as tintas caíssem sobre ela. O homem pegou uma tela e a colocou sobre o cavalete, escolheu cuidadosamente um dos pincéis. Do outro lado do salão o quadro do riacho começou a pingar.
Gota. Gota. Gotas. Fino fio de água. Explosão. Inundação.

Da parede onde estava o quadro surgiu um riacho, folhas, galhos, até mesmo árvores inteiras escaparam da moldura para tomar a parede em que o quadro a momentos antes estava. O homem pareceu satisfeito e pôs-se a pintar. A água não molhava e era de um azul bem claro. A menina se aproximou bem devagar do homem para observá-lo pintar. A cada pincelada dada representando aquela cena inesperada, parte do riacho e do bosque sumia do salão. O pintor capturava a paisagem e a prendia em sua tela. Com pinceladas rápidas e precisas o pintor terminou sua obra. O quadro que ele pintou era exatamente igual ao quadro que estava na exposição e até mesmo a assinatura era idêntica. O homem pegou suas coisas e subiu desajeitadamente pela escada, gargalhando, divertindo-se consigo mesmo devido ser tão desajeitado.

A menina e seus pais foram para o próximo salão. O coração da pequenina batia rápido.

Um homem com cabelos e roupas estranhas corria de um lado para o outro com um pequeno espelho em suas mãos. Ele gritava sobre como estava belo naquele dia e que, se pudesse, casaria consigo mesmo. O doido saltitante era igual ao homem de uma das pinturas que estavam no salão. A menina se aproximou do quadro para tentar ler a plaquinha com as informações; e ela leu, com dificuldade, “Autorretrato”. O pai dela disse “Isso quer dizer que o pintor pintou si mesmo, é ele no quadro. O nome dele é-”. A menina não conseguiu ouvir o nome do pintor porque o próprio gritou de emoção ao pintar uma expressão enigmática em seu olhar; e a menina não conseguiu ler o nome dele na plaquinha. “Aqui diz que ele era um pouco narcisista”, disse a mãe da menina.

O próximo salão foi bem mais agradável. Havia campos floridos, uma mãe ninando seu bebê, uma divertida conversa em um fim de tarde, mas o que mais impressionou a menina foi uma pintora. Ela usava um vestido da cor de champagne, e usava seus cabelos em trança por cima de seu ombro esquerdo. De todos os pintores que ali estavam apenas aquela pintora pareceu notar a menina. A mulher se aproximou da pequenina e disse:

- Está se divertindo?


E a menina balançou a cabeça em afirmação. A pintora sorriu gentilmente e beijou a face da menina e também deu um leve beliscão em sua bochecha. Uma leve luz a fazia brilhar, uma luz parecida com o preguiçoso Sol de uma manhã de outono. Aquela mulher parecia um anjo.

Do outro lado do salão pontinhos em cores berrantes apareceram no ar explodindo que nem pipoca para formar um castelo. Era um tal de pontilhismo convencido que apenas queria se aparecer.

No último salão daquela exposição havia apenas um pintor. Seus cabelos e sua barba eram vermelhos como o fogo.

O homem estava em pé em frente a uma tela em branco. Ele pegou sua aquarela e seu pincel e começou a pintar. Devagar e cuidadosamente ele pintava. Repentinamente o homem fora tomado por um acesso de loucura e uma cama, mesa e cadeira surgiram perto da parede. Ele se deitou na cama. Tapando os ouvidos com as mãos enquanto gritava para que algo se afastasse, e a menina sentiu medo e se escondeu atrás de seus pais.


Então o homem se levantou da cama dizendo repetidamente. 

- Uma flor radiante para outra flor. Para a pequenina flor vermelha.

E ele pintou girassóis. Quando terminou, olhou para a direção onde a menina estava, mas não conseguiu vê-la porque ela tinha voltado para o início da exposição para observar as pinturas com mais atenção.

Momentos depois os girassóis na tela ficaram secos a cada instante. Em cima da mesa havia uma arma de fogo e fumaça saia de seu cano. O cobertor e os lençóis da cama, antes brancos, tingiram-se de rubro.

A menina se tornou mulher, a filha se tornou mãe. Mesmo após todos esses anos ela ainda gostava de vermelho; a antiga fita prendia seus cabelos. Sua filha gostava de azul e usava uma fita da mesma cor. A exposição que visitara em sua infância fazia parte da pinacoteca de um museu estrangeiro e a mãe levara sua filha a ele.

Não foi difícil perceber que a filha também podia ver os pintores; ela estava parada no centro do salão com a boca e os olhos bem abertos, parecendo suprimir um grito; e a mãe riu, se perguntando se havia ficado da mesma maneira anos atrás. Mas agora a mãe não conseguia vê-los; esta foi uma oportunidade reservada à sua infância. Ao decorrer de sua vida ela entendera o significado do que vira: Por trás de cada pintura havia uma história, por trás de todo o caos expresso em uma tela havia a ordem. Há décadas, na frente de espaços em branco, havia visionários, românticos, loucos; pessoas de todos os tipos que, a cada pincelada, deixavam parte de suas alegrias, seus medos, suas dores. As pinturas eram janelas que davam vista a mundos magníficos.
Ela se lembrou do pintor que tinha os cabelos de fogo e procurou o quadro com os girassóis. E ela o encontrou. E também encontrou outra coisa.

No chão, logo abaixo do quadro, havia um pequeno girassol. Suas pétalas brilhavam tenuemente como se fossem feitas com a luz solar matinal. No caule da flor havia um pequeno pedaço de papel em que estava escrito:

Para a pequena flor vermelha




(Conto lido no encontro de 23/08/2016 sobre mote de Clarice Lispector)

Gabriel Cerqueira é uma criatura profunda que habita um mundo raso.

 

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