Terrorismo poético para os tempos mornos - Igor Dias
Terrorismo poético para os tempos
mornos
A verdade é que os flashmobs ficaram fora de moda.
Pra quem não se lembra, flashmobs eram manifestações espontâneas ou
semi-espontâneas de um agrupamento de pessoas que aconteciam nos espaços
públicos. Geralmente, essas mobilizações estavam associadas a pedidos de
casamento e declarações de amor, ou a espetáculos de dança bem coreografados,
que ocorriam em lugares improváveis. Essas manifestações foram muito comuns nas
grandes metrópoles brasileiras entre os anos de 2007 e 2010, tendo caído numa
espécie de ostracismo desde então. É importante ressaltar o caráter cordato e
ordeiro dessas manifestações, de forma geral. Cria-se um microcosmo de
fantasia, e logo após, tudo volta ao normal. Uma face menos conhecida dos
flashmobs é o que se conhece por terrorismo poético. Mais associada às
manifestações da contracultura e dos movimentos marginais de uma maneira geral,
as ações de terrorismo poético utilizam o flashmob como uma forma de
desarticulação das engrenagens do cotidiano, de forma a provocar uma
desestabilização da rotina e das lógicas naturalizadas do mundo em que vivemos,
que não possuem, evidentemente, qualquer coisa de natural. Como acreditamos que
tudo que é bom um dia volta, quase sempre numa roupagem vintage, optamos por apresentar abaixo cinco sugestões de flashmob
para os dias mornos, sempre na estética do terrorismo poético. Para realizar as
ações descritas abaixo, tenha sempre alguns amigos com você.
1) O caso da mãe desconhecida – Em um shopping de
grande circulação, aborde uma mulher de meia-idade. Chame-a de mãe. Abrace-a.
Diga que sente muito a sua falta. Diga que desde que você foi abandonado aos
cinco anos, não há um dia sequer em que você não sonhe encontra-la. Ela ficará
confusa, mas tenderá a negar, Chore, grite, esperneie. Diga que não irá tolerar
um segundo abandono por parte dela. Alguns dos seus amigos deverão corroborar a
sua versão da história junto ao público ao redor, que certamente não parará de
crescer. Observe atentamente a reação das pessoas. Se a massa de pessoas tender
para o lado dela e vocês ficarem como falsários na história, é importante não
assumir a mentira. Ajoelhe-se e chore de forma convulsiva no chão lustroso do
shopping enquanto as pessoas vão indo embora. Caso, entretanto, o povo tenda ao
seu lado, diga que ela está debilitada e que a entende por não ter condições de
agir racionalmente naquele momento. Saia abraçado com ela para um local menos
movimentado. Curta a sua nova mãe.
2) O caso do livro inexistente – Invente um livro
que não existe. Mas invente mesmo. Tenha de cor o título, autor, editora, capa
e um enredo mínimo sobre a história. Vá a uma livraria e pergunte pelo livro. A
resposta de um livreiro médio será a de que a livraria não possui esse livro no
catálogo. Cerca de uma hora depois, um de seus amigos irá chegar procurando o
mesmo livro, com as mesmas descrições. E depois outro. E outro, e outro, e
assim sucessivamente. A um dado momento, muito provavelmente no terceiro
comprador, o livreiro deverá argumentar que outras pessoas procuraram pelo
mesmo livro, mas que ele não sabe do que se trata. O comprador deverá falar bem
do livro, eventualmente mencionando uma indicação de um grande amigo. Faça isso
por três dias, com uma quantidade grande de amigos. Ao espanto do vendedor, é
importante fazer uma cara de muita surpresa. Diga que não sabe de nenhum trote,
nenhum jogo, nada. A única coisa que você tem certeza é de que o livro foi
muito bem indicado a você e que você nada tem a ver com a paranoia do vendedor.
Esse flashmob pode ficar ainda mais interessante: se você tiver amigos do ramo
livreiro, adiante o título e a descrição de um livro que ainda não saiu. Nesse
caso, o vendedor, deverá receber as remessas verdadeiras do tal livro
inexistente poucos meses depois do caso.
3) O caso dos ovos quebrados – Entre em uma
loja-âncora do setor de roupas. É preciso que se entre com uns seis ou sete
amigos de uma só vez. Cada um dos envolvidos deve levar um ovo cru consigo, se
espalhar por um setor diferente da loja e quebrar os ovos no bolso de uma das
roupas. Por exemplo: um quebra um ovo no bolso de uma camisa social, outro no
bolso de uma calça jeans, outro no bolso de um short feminino, etc. Saiam da
loja e entrem novamente, com calma, um de cada vez. Você deverá, então, chegar
à boca do caixa e pedir para chamar o gerente. É necessário calma nesse
momento. Fale com o gerente que achou um ovo quebrado dentro de uma das roupas,
e que não tem paciência para esse tipo de piada de mau gosto. Finja caminhar
para um solução conciliatória, e quando as coisas estiverem a ponto de se
resolver, deverá chegar o segundo envolvido trazendo uma outra roupa, também
com um ovo quebrado dentro do bolso. Quando os dois parecerem novamente se
encaminhar para uma solução pacífica, deverá chegar o terceiro, e assim
sucessivamente. Neste flashmob, é importante se certificar de que não há
câmeras no local. Caso haja, a ação deverá ser feita por dois grupos separados,
de forma que o grupo que colocará os ovos quebrados nas roupas seja diferente
do grupo que irá reclamar com a gerência.
4) O caso da pausa – Para este flashmob serão
necessárias muitas pessoas, pelo menos umas dez. Esteja andando em uma rua, e
de repente pare. Concentre-se fixo num ponto à sua frente, e permaneça parado. Mais
ou menos ao mesmo tempo, todos os envolvidos na ação deverão parar em pontos
distintos da mesma rua, cerca de cem metros de distância um do outro. Cada um
deles também deverá parar e olhar para um ponto fixo, que não deverá ser o
mesmo para cada um (ou seja, cada um olha para o lugar que escolher). O caso
clássico da pausa, ou seja, aquele em que um grupo de pessoas olha para cima
fingindo que uma pessoa vai se jogar de um prédio, já é bastante conhecido. Por
isso é importante que haja os cem metros de distância. A grande dinâmica desta
ação está em fazer parecer que não se trata de uma ação articulada de um grupo.
Muitos transeuntes não irão sequer notar que há uma pessoa parada a cada cem metros,
o que irá causar um desconforto ainda maior para aqueles que perceberem.
Certamente, o transeunte que perceber que há uma pessoa parada a cada cem
metros, irá abordar um dos envolvidos. Nesse caso, a pessoa deve fingir sair de
uma espécie de torpor e dizer uma frase como “Ah, desculpe, acabei me perdendo
um pouco nos pensamentos”, ao que ela deverá sair e andar como se nunca
estivesse estado parada. Se o transeunte for embora, a pessoa envolvida na ação
deve voltar ao local e ficar novamente parada, para manter a ação em curso. É
importante combinar com todos os membros qual é a frase a ser dita ao ser
abordado por um transeunte. É crucial que todos os envolvidos mostrem
despretensão ao serem abordados, mas que pronunciem exatamente a mesma frase e esbocem
exatamente a mesma reação. O transeunte que perceber que há pessoas paradas a
cada cem metros, e ouvir a mesma frase ao abordar cada um deles, poderá ser
levado ao desespero. Neste caso, o objetivo é trabalhar bastante a paranoia das
pessoas, de forma que a ação só pareça fazer sentido para os poucos que a
percebam.
5) O caso das flores – Ensaie com amigos uma
coreografia. É preciso que seja uma coreografia bem ensaiada; isso pode levar
um tempo. Escolha um momento de apresentação, que poderá ser na rua, ou em um
shopping de grande circulação. Façam parecer que se trata de um pedido de
casamento. Algumas coisas que facilitam nesse sentido são ter uma coreografia
composta apenas por homens, em que um deles se destaque, e também ter uma única
mulher meio tímida que assiste a apresentação com surpresa. Nenhum desses
elementos, contudo, é mandatório. É importante que em algum momento da dança
haja flores, muitas flores e de tipos variados. Prefira crisântemos,
margaridas, girassóis e gérberas. Podem usar rosas também, mas não são as mais
indicadas. Façam uma coreografia bem alegre, de forma a chegar numa espécie de
ápice em quatro ou cinco minutos. Nesse momento, as pétalas dessas flores
deverão ser jogadas ao alto. Quando tudo parecer se encaminhar para o pedido de
casamento, entra um esquife segurado por seis pessoas. O caixão deverá estar
fechado (evidentemente, porque na verdade, estará vazio), e coberto por uma
bandeira de um time de futebol (aliás, se conseguirem uma bandeira sem qualquer
significado, fica ainda melhor). Nesse momento, uma das pessoas pega o
microfone e começa um discurso. É importante que o discurso tenha um conteúdo
muito triste, algo como a narração de uma morte súbita de uma pessoa jovem e
querida. É importante que não se demonstre tristeza na voz, e que a oratória
esteja mais para um discurso patriótico. Ao fim do discurso, que deverá ser
tristíssimo, as pessoas envolvidas sustentam os mesmos sorrisos (que deverão
parecer sinceros, isto é, sorrisos de verdadeira felicidade) e repetem de forma
leve e alegre os mesmos passos de dança realizados anteriormente.
Conto escrito
para o encontro de 28/04/2015
Igor Dias nasceu no outono de 1987, na cidade do Rio
de Janeiro. Participa dos coletivos literários "Clube da Leitura" e
"Caneta, Lente & Pincel". É autor do livro de poemas, "Além
dos Sonetos Breves", (Ed. Oito e Meio, 2012).
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