O Enantiomorfo, por Guilherme Preger

 

Meu nome é xxx, mas pode me chamar de Nane. Nessa pandemia para aliviar minha solidão de tantas amizades meramente virtuais, criei um amigo enantiomorfo para conversar. Dei-lhe o nome de Enan. Crei um e-mail para ele e uma conta de mídia social.


Procurei uma imagem minha para ilustrar seu perfil social. Trabalhei para obscurecê-la num software de desenho, como se ela se tivesse tornado uma imagem de meu próprio raio-x. Fiz obviamente amizade primeiramente comigo mesmo. Enan era parecido comigo em muitas coisas, mas pensava sempre a 180 graus de diferença. Assim, se eu dizia sim, ele vinha com não, ou se eu dizia esquerda, ele insistia com a direita. Se eu achava 1, ele devolvia 0. E vice versa.


Jamais tinhamos consenso sobre assunto algum e nossas tretas infindáveis começaram a chamar a atenção de outros amigos meus nas mídias sociais que pensavam como eu e por isso não me eram enantiomorfos. Eles se admiraram de como Enan havia “furado a bolha” e rapidamente lhe pediram para segui-lo. Em pouco tempo Enan já tretava com todos, às vezes por horas ou mesmo dias. Algumas dessas tretas ficaram tão ríspidas que Enan teve que bloquear alguns desses amigos ou foi bloqueado por outros.


Um desses amigos virtuais bloqueados me pediu conversa reservada para perguntar onde eu tinha conhecido figura tão estranha, uma vez que ele era tão diferente de mim. “Nunca pensei que você mantivesse amizade com pessoas desse tipo”, é o que meu amigo não enantiomorfo me dizia. Eu lhe respondi que Enan era legal, que tinhamos muitíssimas coisas em comum, que éramos parecidíssimos fisicamente. Que eu o considerava uma “alma gêmea”. O fato de termos ideias tão radicalmente opostas, no entanto, não era um empecilho à amizade. Ao contrário: que com Enam eu mantinha uma amizade verdadeira. “Como assim verdadeira?”, perguntou o amigo virtual. Ele estava espantado como eu poderia manter amizade com alguém com ideias tão “deprimentes”, expressão maledicente que ele usou. E eu lhe respondi que era verdadeira porque superava todas as contradições, porque dava liberdade ao outro para pensar completamente ao contrário e que isso era a prova suprema da confiança. E aí percebi, pela desconfiança de meu amigo não enantiomorfo, que nossa amizade virtual não tinha nada mesmo de concreto. E o bloqueei.


A verdade é que fui bloqueando aqueles mesmos amigos que Enam havia bloqueado ou que o haviam bloqueado. E sobraram em comum alguns poucos amigos virtuais. Como eles haviam aceitado nossas tretas, minhas com Enan, concluí que eles eram amigos verdadeiros, capazes de entender a diferença entre nós dois. Eles ocupavam algum lugar entre 0 e 180 graus.


O único problema é que eu nunca conseguia encontrar Enan. Eu tinha duas contas abertas em dois laptops diferentes, mas quando eu escrevia numa conta, ele estava na outra. Quando eu mudava de laptop para responder, ele ia para o outro equipamento. Em várias dessas tretas comecei a confundir as contas e às vezes escrevia como eu mesmo na conta de Enan, e ele me respondia na minha própria conta. Mas em verdade, mesmo assim, nunca nos encontrávamos. Ele estava sempre na outra conta. Alguns amigos virtuais viam as nossas tretas, mas não mais sabiam participar, pois não entendiam quem estava a favor do quê. E de fato, com o tempo, eu passei a me esquecer quais eram as minhas posições e quais eram as de Enan.


Por exemplo, na questão religiosa, eu era ateu e Enan obviamente acreditava num deus único. Pelo menos era assim no começo, pois alguns meses depois eu professava minha fé em Alá e fazia oração diária à Meca, enquanto ele havia se tornado um materialista dialético agnóstico. E eu não sabia exatamente quando havíamos trocado de crenças.


Os algoritmos da mídia social sempre mostravam assuntos diferentes em nossas páginas, dependendo da conta e eu comecei a ficar confuso quais eram as notícias e os anúncios dirigidos a mim. E comecei a sentir enorme dificuldade quando tive que escrever meus trabalhos acadêmicos, pois não sabia exatamente por onde começar. Nessas horas eu perguntava a Enan, pela rede social, para me dar uma ideia, então ele me mandava uma, e eu procurava encontrar qual a sua negatividade, para começar com sua exata contradição. É um bom método, pois alguém disse que a contradição é o motor dos conceitos.


E agora me dou conta que é o que acontece neste exato momento, pois acabo de perceber que sou verdadeiramente Enam, o autor deste pequeno relato. Sei disso agora, porque quando Nane me contou a ideia para este texto, eu lhe disse que era uma ideia genial, e que deveria escrevê-lo o mais rapidamente possível.


O escritor Gulherme Preger é enantiomorfo ao engenheiro Guilherme Preger, capoeirista e fabulador especulativo. 

(Conto escrito para o encontro de 28/07/2020)


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