Amy aos treze (ou como se cria uma Diva), por Guilherme Preger
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Amy gostava de passear no táxi do Pai cruzando os subúrbios de Londres aos domingos. Ele reservava exclusivamente o táxi para sair com a filha (ele tinha mais um garoto, Alex, dois anos mais velho do que Amy), como programa de fim-de-semana paterno, compensação da sempre mal digerida separação com a mãe dos garotos, quatro anos antes. O passeio de automóvel se mantinha para a então mocinha de treze anos como o último laço da infância além das bonequinhas pinup tipo década de 50 que agora pendiam de suas orelhas. Iam ouvindo Frank Sinatra e Dinah Washington e cantarolando os sucessos de jazz e R&B de que gostavam tanto.
Enfim a mocinha já não era mais uma menina e o corpo apresentava as curvas esculpidas pela produção química incessante da tiróide. O processo era irreversível: a forma mulher desenhava sua presença inquietante no banco do carona. Os seios, em particular, se avolumavam; mas ainda estavam lá, da antiga menina, o longo cabelo negro, os olhos enormes e as felinas sobrancelhas que, no entanto, se adaptavam ao conjunto naturalmente como se fossem antes da mulher que habitara a criança. Era esta Mulher a sua filha, pensou o Pai e lamentou ter saído de casa justamente neste período da metamorfose feminina que transforma a doce garotinha num misterioso ser quase monstruoso de desejo.
Agora eles eram um homem e uma mulher passeando de carro e ouvindo música. My Way na voz de Sinatra, de que ambos amavam. Cada um tem seu jeito único de levar a vida, era o suficiente que ele gostaria de lhe passar como educação. Não há como medir e comparar a vida de cada qual. Ame o outro como outro, como dizia o rabino na antiga sinagoga que compareciam outrora. Algum dia, mais velha e vivida, ela compreenderia o que o levara a sair de casa e se reconciliariam inteiramente, pois “To know him is to love him”. Ele não deixara de amar sua mãe, mas o amor é um jogo de perder, como ensinava o velho Frankie em suas inesquecíveis canções. Era preciso fazer escolhas, ou será que as escolhas é que nos fazem? Para quem quer se apaixonar é preciso amar a perda. Há toda uma arte de perder que é preciso aprender.
Amy não quis dizer que preferia a versão do Sex Pistols, apesar de tudo. E então soltou a voz no táxi, o que muito impressionou seu não tão velho Pai. Era pela voz que a mulher mais se adivinhava na adolescente. Eles sempre cantaram muito em casa. A família da mãe era de músicos, o filho especialmente tinha jeito para cantar. Quando ainda moravam juntos, Amy gostava de Madonna. Mas nesses quatro anos de intervalo, a menina descobriu a música negra, e amava especialmente Salt” n Pepa. Formou, com sua melhor amiga, Juliette, uma banda de rap ” Sweet” n Sour, na qual Amy, obviamente, era “Sour”.
A moça tinha mesmo uma presença, diziam, e a voz ficava cada vez mais grave, como o de uma diva do blues que a tivesse consumido no álcool e no cigarro. Deram uma força, compraram-lhe no seu aniversário de doze anos uma guitarra e a colocaram numa escola de teatro. Mas Amy não demorou lá muito tempo. Ela era muito dispersiva, irrequieta. Primeiro foi aquela tatuagem esquisita, depois aquele piercing ostensivo no nariz que, neste momento, ele discretamente evitava encarar. Por que esta geração precisava ficar se furando, se machucando? Para o Pai, era incompreensível. Mas foi apenas assistindo a um recital da filha que percebeu repentinamente que algo realmente havia mudado. Lembrava apenas da menina cantando nas cerimônias do Bar Mitzvah, quando o irmão fez seus treze anos. Agora era ela que alcançava os treze e, apesar de sua aparência desleixada e extravagante, podia dizer a todos que é uma boa menina, com um jeito curiosamente maternal, mas no qual se percebe algo de diferente”¦ Ela poderia ir longe, fosse ela mais ambiciosa e até mais pragmática. Mas por que ela precisa ficar dizendo tanto palavrão e falando merda para tudo, como um homenzinho?
Mas o que ele, o Pai, o motorista de táxi, poderia lhe dizer, pensou Amy, ouvindo a voz de Nina Simone cantando I put a Spell on You? Ele deixou sua mãe sozinha, queria então compensar com ela? Seria seu amante? He can only hold her. Ela havia desejado lhe dizer certa vez, você sabe que eu não sou boa coisa. E fodam-se meus palavrões. Sim, sou ainda virgem, mas grande merda o sexo. Ela deveria lhe invejar apenas por ele ter um pênis? O que é um pau comparado a um coração partido? Como Billie Holliday esperando seu homem apenas para apanhar dele. Apenas para logo ser abandonada. Ela não via a hora de crescer para poder sofrer completamente. Os homens são tão simplórios. E o que são os homens afinal?
E o táxi, levando um homem e uma mulher, cruzava as ruas de Ensfield em direção à velha cidade de Londres, ao sul, cruzando New Southgate, Woodside, Noel Park, Harringay, ao som de I”m in the Mood for Love, na voz rouca de Sarah Vaughan.
(Conto lembrança escrito em 2011 em homenagem à cantora)
Guilherme Preger, escritor, engenheiro e capoeira já amou muito ao som de Amy
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