O Defunto, por Pedro Nava
O DEFUNTO (Pedro Nava)
A
Afonso Arinos de Melo Franco
Quando morto estiver meu corpo evitem os inúteis disfarces, os disfarces com
que os vivos, só por piedade consigo, procuram apagar no Morto o grande castigo
da Morte. Não quero caixão de verniz ou os ramalhetes distintos, os superfinos
candelabros e as discretas decorações. Eu quero a morte com mau gosto! Deem-me
coroas de pano. Deem-me as flores de roxo pano, angustiosas flores de pano,
enormes coroas maciças, como enormes salva-vidas, com fitas negras pendentes. E
descubram bem minha cara: que a vejam bem os amigos. Que a não esqueçam os
amigos que ela perturbe os amigos e que lance nos seus espíritos a incerteza, o
pavor, o pasmo... E a cada um leve bem nítida a ideia da própria morte.
Descubram bem esta cara! Descubram bem estas mãos: Não se esqueçam destas mãos!
— Meus amigos! Olhem as mãos! Onde andaram, que fizeram, em que sexos se
demoraram seus lábios quirodáctilos? Foram nelas esboçados todos os gestos malditos:
até furtos fracassados e interrompidos assassinatos...
—
Meus amigos! Olhem as mãos que mentiram às vossas mãos... Não se esqueçam:
elas fugiram da suprema purificação dos possíveis suicídios...
—
Meus amigos! Olhem as mãos, as minhas e as vossas mãos! Descubram bem minhas
mãos! Descubram todo o meu corpo. Exibam todo o meu corpo e até mesmo do meu
corpo as partes excomungadas, as partes sujas sem perdão, que eu esmagava nos
sábados e aos domingos renasciam!
— Meus
amigos! Olhem as partes... Fujam das partes... Das punitivas, malditas
partes...
— Meus amigos! Arranquem as suas... Esmaguem as suas... Amputem as suas... Eu
quero a morte nua, crua, terrífica e habitual, com o seu velório habitual Ah, o
seu velório habitual... Não me envolvam num lençol: a franciscana humildade,
bem sabeis que não se casa com meu amor pela Carne com meu apego ao Mundo. Eu
quero ir de casimira: calça listrada, plastron... com os mais altos colarinhos,
com jaquetão com debrum... Deem-me um terno de ministro ou roupa nova de
noivo... E assim, solene e sinistro, quero ser um tal defunto, um morto tão
acabado, tão aflitivo e pungente, que a sua lembrança envenene o que restar aos
meus amigos de vida sem minha vida.
—
Meus amigos! Lembrem de mim. Se não de mim, deste morto, deste pobre terrível
morto, que vai se deitar para sempre, calçando sapatos novos! Que se vai como se
vão os penetras escorraçados, as prostitutas recusadas, os amantes despedidos,
como os que saem enxotados e tornariam sem brio a qualquer gesto de chamada.
Meus amigos! Tenham pena, senão do morto, ao menos dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos sapatos pretos de verniz. Olhem bem estes
sapatos,
e olhai os vossos também...
Rio de Janeiro, 23 julho de 1938
(Mote lido por Walter Macedo Filho para o encontro de 08/09/2020)
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