O alfabeto do silêncio, por Leo Almeida
Quando lhes disse que havia descoberto o Manual, trataram-me como louco e impuseram-me grades e medicações. De uma hora para outra, em função de minha declaração firme, resoluta, fui tratado como ensandecido e merecedor do claustro manicomial. Ah, quisera eu ter calado a descoberta e tudo seria tão diferente em minha vida, mas não... com a boca grande dos perdidos e deslumbrados, contei a todos que, fuçando uma velha estante de livros num sebo do Largo de São Francisco, caiu-me em mãos o tal Manual que, na verdade, intitulava-se Gramática da Poesia do Silêncio – Manual prático para principiantes.
Primeiro quedei-me estupefato, pois a tal Gramática, uma espécie de Santo Graal da Estética Literária, era tão rara quanto o corno de um unicórnio. Para muitos, tratava-se de mera lenda, conto de fadas. Uma das mais antigas menções ao livro, encontra-se na pequena dupla-quadra do Cancioneiro Geral, atribuída a Garcia de Resende:
Se silêncio queres
Busca a poesia
Não a que alicia
A doce língua tua.
Usa o Manual
Puro diamante
Para teus poemas
De principiante.
Fá-lo em silêncio
Como deve ser
Eis o tal incêndio
Deixa-te acender.
Dizem que um exemplar, de posse de Dom Manoel de Barros, foi-se às profundas com seu dono na nau Santa Catarina de Cascais, que naufragou nas costas da Paraíba, em 1612. Apesar de divulgado por diversos jornais que no famoso baú de Fernando Pessoa havia um exemplar do Manual, nada foi comprovado. Aliás, é Fernando Pessoa, pela pena de seu Álvaro de Campos, que menciona a Gramática. No longo poema “O alfabeto do silêncio”, publicado no segundo número da Revista Orfeu, em 1915, ele escreve:
A velocidade não tem som
é como a voz que se engole e que se engasga
a si própria, como a cauda
de uma serpente enovelada.
Exatamente como a Gramática da Poesia do Silêncio
Que ninguém leu, mas todos falam,
E lentamente passa
Ante o olhar analfabeto
De quem não arrisca um verso.
Quando descobri o volume mítico, tratei de escondê-lo cuidadosamente para que não se perdesse, para que não o roubassem e, principalmente, para que não o tirassem de minhas mãos. Por conta dessa decisão, trataram-me como louco. Meu irmão passou a temer por mim. Minha irmã, a temer por si, julgando-me violento por defender a posse de minha gramática. Essa atitude provou-se correta, pois quando bateram à minha porta, dois enfermeiros e um médico, não tive tempo de fazer mais nada, a não ser submeter-me à camisa de força. Não adiantaram meus pedidos de ajuda, pois o olhar de meus pais, para meu espanto, era puro desespero. Como pode haver mais desespero neles que em mim, que me perdia irremediavelmente naquela ambulância fria?
Há dias encontro-me aprisionado, mas tenho cá meu conforto. Ninguém vê o Manual que eu trouxe guardado sob a unha do dedo indicador. Escondi muito bem. Deu-me um trabalho enorme socá-lo sob a unha, mas valeu a pena. Só eu sei de sua presença e nele eu estudo todas as noites, antes dos últimos comprimidos que me fazem dormir.
Uma pena não poder compartilhar com ninguém a minha descoberta. Ando escrevendo poemas seguindo os ensinamentos da Gramática. São poemas simples, reconheço, mas tenho grandes pretensões. Este cemitério de vivos não matou minha ambição.
Pela gramática aprendi que o alfabeto do silêncio é composto por olhares sem pressa, plenos de preces e bocejos; por climas de exata indefinição, como mãos abanando em adeuses e cheiros de chás de camomila; por entardeceres quase noite cantando com os grilos inexistentes; por saudades impregnando gestos que se alongam, como galhos de palmeira ansiando o sal da areia numa praia qualquer; por sensações expressas no corpo que se enrodilha em si mesmo, como idoso feto carente de afetos. O alfabeto do silêncio tem ícones translúcidos que denotam melancolia, como fossem marcações do tempo condensado numa sinfonia que ninguém escuta. É assim que se escreve em silêncio o poema desejado e não dito, inacessível ao som e à concretude da linguagem. Esse é o poema que passei a vida rascunhando em sonho e sândalo, em busca de sua seiva, do seu néctar, seu veneno e seu antídoto. Em vão, em vão...
(conto vencedor escrito para o encontro de 11/08/2020 para o mote de Manoel de Barros)
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