A Deus, por Ana Claudia Calomeni

        Vida é teia que se tece. Fio-a-fio. A minha é miúda. De onde venho, mulher é para casar, cuidar dos pequenos, cozinhar e satisfazer marido. Da porteira para dentro é onde ela se desenrola. Esquento comida. Degolo galinha. Passo e lavo roupa. Levo e trago água. Também costuro. Emendo panos e combino tempo e espaço criando vestido novo com trapos de roupas velhas. 

Aos domingos esqueço galinha, criança, roupa e marido. O galo canta, adivinhando o dia. Acordo antes de todos. A casa ainda no escuro, a janela do quarto já emoldura um horizonte avermelhado que me lembra um quadro pendurado na sala da casa da Glorinha, na cidade. Foi a única vez que fui visitá-la. Lembro dela chegando em casa nos braços da mãe, o pai feliz, mas triste porque era mais uma menina. 

Apago a luz fraca do lampião aceso na noite anterior. Lá fora o dia nasce. Me levanto em silêncio. Abro a porta do armário tão devagar que consigo enganar o ranger das dobradiças enferrujadas. O vestido, cosido e descosido uma dezena de vezes, trapos escolhidos, relatos tecidos em tramas antigas, me cai bem. Calço o mesmo par de sandálias com que me casei com Lívio, que se mexe na cama, vira-se para a parede e volta a roncar. 

Passo pelo quarto das crianças. Estão desalinhadas na cama, entregues ao sono. Me aproximo. Domingo é o dia de que mais gostam. Brincam a vontade na terra, constroem castelos de barro, que destroem depois. Chego bem perto. Delas, levo o cheiro. “Mamãe, você vai sair?”. “Shhh, volta a dormir, tá cedo ainda.”

Dobro a manta que cobre o sofá e a acomodo com cuidado dentro da mala. A claridade entra pelas frestas da janela. Vou até a cozinha. O fogão, a lenha encostada no canto, os móveis da sala, cada quadro preso na parede. Levo tudo em mim. 

Encho o peito de ar, abro a porta e sigo caminho. Antes de alcançar o trecho da estrada que se bifurca, vejo uma carroça vindo na minha direção. Passa barulhenta, puxando latas, cavalos com as crinas enfeitadas de fitas brancas. Um homem segura as rédeas, uma mulher ao seu lado sorri. 

Antes de entrar na casa nos braços dele, ela olha a estrada. 


Inverno/2020


(Conto escrito para o Clube Apanhando o Desperdício, em 11/08/2020)

Ana Claudia Calomeni é carioca, aposentada, tem dois filhos adultos, já publicou alguns livros em parceria com outros autores e costuma sempre achar que tudo vai dar certo no final.


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